Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O apocalipse anunciado

É o fim do mundo.




“O jornalismo americano vive um período de terror. A invenção da internet causou uma guinada fundamental não apenas em matéria de plataformas de acesso à informação – tela em vez de papel –, mas no modo como as pessoas buscam informação. Em termos evolutivos, é uma súbita e drástica mudança climática. Uma era passa e outra era começa. Espécies que sobrevivem à transição geralmente não são os reis da velha era. O mundo em que cabiam tão perfeitamente não existe mais. São grandes e lentos, presos a métodos antigos, maduros para serem extintos.”


As aspas são do jornalista americano Mark Bowden. Foram tiradas, como a maioria das que se lerão adiante, do seu quilométrico artigo (11.300 palavras) “Breaking the News” [Partindo as notícias, que joga com a expressão jornalística breaking news que significa originalmente notícias de última hora].


O artigo saiu na edição com data de maio da revista Vanity Fair, que por sinal traz na capa a modelo Gisele Bündchen.


É um artigo que combina um perfil do criticado mas geralmente benquisto publisher do New York Times, Arthur Ochs Sulzberger Jr., com um necrológio prematuro da imprensa em geral e do Times em especial. Este seria o espécime mais representativo da espécie que segundo Bowden estaria madura para desaparecer.


Não é segredo que, aos 158 anos, o diário que é considerado o padrão-ouro do jornalismo mundial arfa para sobreviver.


Na Bolsa de Nova York, pode-se comprar uma ação da companhia que o publica pelo preço de banca de sua edição dominical (US$ 4) e ainda ficar com o troco.


Decerto para profunda humilhação da família que a controla há cinco gerações, não faz muito a empresa precisou tomar emprestado US$ 250 milhões do magnata mexicano das telecomunicações Carlos Slim, que já é dono de 7% das ações ordinárias da Times Co. Não foi para investir, mas para pagar dívidas.


Há dois anos, a companhia se mudou (com o jornal) para um espetacular arranha-céu na Oitava Avenida, em Manhattan, desenhado pelo famoso arquiteto Renzo Piano. Tiveram de vender o edifício, também para pagar dívidas.


Se um dia o próprio NYT for posto à venda – “algo impensável no passado, agora muito pensável”, escreve Bowden – Slim poderá ser um dos candidatos a comprá-lo.


Como dizem os americanos, quando é para chover, chove mesmo. Desnecessário falar do que é que chove.


O fato é que o apocalipse está moda quando se discute o futuro dos jornais – as revistas, embora não estejam nadando de braçada, parece que se mantêm com a cabeça acima da água.


A ideia, que o eventual leitor deste blog já deve estar rouco de tanto ouvir, é que a internet tornou a imprensa escrita irrelevante, apressando, com isso, a ruína do seu obsoleto modelo de negócios.


Quando soube pelos jornais que tinha morrido, o escritor americano Mark Twain [1835-1910] disse que a notícia era “ligeiramente exagerada”.


Quem sabe um dia se dirá o mesmo das notas de falecimento do jornal-papel que não param de sair. E quando a discussão terminar, sem que os fatos tenham dado razão aos apocalípticos, quem sabe isso será notícia – impressa.


Vai aí um pouco de torcida? Vai. O mundo precisa de jornais – jornais de qualidade, bem entendido – no mínimo tanto quanto os jornais precisam de leitores. Para a civilização. Para a democracia.


Independentemente disso, a verdade é que não existe uma crise da imprensa. Mesmo nos Estados Unidos, onde muitos estão convencidos de que está soando a hora dos jornais-como-os-conhecemos, está claro que se subestima a capacidade da mídia impressa de (re)encontrar o seu eixo. A imprensa foi condenada à morte quando começou a era do rádio e executada quando a televisão se tornou onipresente.


Primeiro, “ninguém mais” iria ler; só ouvir. Depois, “ninguém mais” iria ler; só ver. Quase ninguém mais se lembra dessas profecias.


Além disso, os padecimentos do próprio NYT são coisa recente. Em 2001, quando fez 150 anos, agorinha há pouco, portanto, as suas finanças vendiam saúde e o jornal era tido como mais bem equipado do que a maioria para se adaptar e sobreviver. Não está, pois, escrito nas estrelas que o melhor jornal do mundo, com os seus 400 repórteres, só sairá da UTI onde foi parar “com os pés na frente”, como dizem os americanos, ou, na horizontal, como dizemos nós.


E o que é mau nos Estados Unidos não é necessariamente mau no resto do mundo. No Brasil, a imprensa está com problemas, mas de modo nenhum nas vascas da parca. Na Alemanha, lê-se jornal adoidado. Claro que o mais popular deles – o Bild, com tiragem superior a 3 milhões de exemplares – é tão repulsivo, pelo sensacionalismo e a vulgaridade, como o Sun, de Londres, que vende 5 milhões. Mas toda cidade alemã importante, como Frankfurt, Hamburgo, Munique e a capital, Berlim, tem pelo menos dois jornais sérios que vale a pena ler.


A propósito, no sábado, 4, a Folha de S.Paulo transcreveu matéria do NYT a que deu o título “Na crise, jornais crescem com inovações”. Embora fale do “cenário difícil” para a imprensa européia, a reportagem identifica “sinais de vida jornalística” no continente:


”A maioria dos jornais [europeus] foi menos afetada pela recessão que os diários americanos, porque dependem de seus leitores mais que dos anunciantes, que tendem a ser mais volúveis.” [Assinante da Folha ou do UOL, leia aqui.]


Por outro lado, a agonia do NYT, como Mark Bowden, o da Vanity Fair, a descreve, é um gancho talvez insuperável para revisitar os desafios que a internet jogou no caminho da chamada imprensa convencional.


Aliás, não deixa de ser irônico. Ele concorda com a avaliação geral de que o NYT tem o melhor site jornalístico dos Estados Unidos [nytimes.com], que atrai mais de 20 milhões de visitantes únicos por mês, mas acusa a versão impressa – com a qual a edição online se entrelaça – de representar “um modelo arcaico de jornalismo”.


Poderia ter explicado por que. Deixando meio que por isso mesmo, imita os que cobram da imprensa escrita que se reinvente, mas ficam deslizando em generalidades.


É verdade, de todo modo, como aconselha o diretor do Projeto de Excelência em Jornalismo do Pew Research Center, dos Estados Unidos, Tom Rosenstiel, que “se você realmente que ir para a internet a sério, precisa mudar a cultura da [sua] organização jornalística”.


Com toda probabilidade, isso tem a ver com o fato de que o leitor de jornal impresso lê jornal, ou pelo menos o folheia, detendo-se nessa matéria, depois naquela e assim por diante, às vezes indo e vindo, vindo e indo, enquanto o leitor do jornal online lê as notícias específicas de que foi atrás para começo de conversa. Ele procura apenas a informação que precisa.


Quase a metade dos que entram no site no NYT para ler uma matéria, informa Bowden, o fazem “por uma porta lateral”. Quer dizer que eles digitaram tal ou qual palavra em um site de busca como o Google e a partir daí foram parar no nytimes.com


Um dado dramático, por falar nisso. O leitor do NYT online se detém nele, em média, não mais de 35 minutos por mês.


Menos tempo, menos critério. Bowden: “A internet desagregou as notícias. Elimina o intermediário, isto é, os editores. A internet os substitui com algoritmos [modelo de cálculo matemático usado pelos sites de busca para capturar notícias]. O Google não julga as informações a que dará acesso no seu site, a menos que o internauta o instrua para tanto.”


Logo, “quando um algoritmo substitui um editor, toda informação vale o mesmo. Matérias de propaganda dividem a plataforma junto com reportagens honestas. Os sites e blogues mais atraentes serão aqueles patrocinados por grandes empresas, o governo, ou interesses especiais, que têm como pagar bons profissionais.”


O artigo não extrai daí a consequência lógica do empobrecimento do leitor. Pena também que cite com certo ar de aprovação um ex-diretor de Redação do NYT, Max Frankel, para quem a alternativa do jornal impresso em face da internet é se especializar: concentrar-se num tipo de assunto – esportes, economia, a cidade…, fazendo do resto o resto.


Mas isso seria a desfiguração do jornal, o abandono da propria ideia de uma publicação ecumênica – que se propõe trazer a cada dia o maior número possível de assuntos relevantes, idealmente com o maior número possível de enfoques, para o maior número possível de interessados em potencial.


É o que fez da imprensa a única, rigorosamente a única instituição capaz de conectar todos os protagonistas da esfera pública das sociedades complexas do mundo contemporâneo – sem o que não haveria controles sociais à atuação dos poderes, nem freios e contrapesos políticos, nem democracia, em suma.


Certa vez, um oficial americano deu a seguinte explicação para o bombardeio de uma aldeia vietnamita: “Era preciso destruí-la para salvá-la.” Pelo visto é o que se quer fazer com a imprensa.