Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Bolsa-Família na imprensa: um debate que não pode parar

Na quarta-feira da semana passada, 26 de outubro, publiquei aqui, com base em duas reportagens originais do jornal Valor, o comentário “A pergunta certa sobre o Bolsa-Família”.

O texto provocou algumas reações apaixonadas, cuja avaliação fica, naturalmente, a critério de cada qual. Em todo caso, a importância insuperável da questão das políticas de combate à miséria e à desigualdade no Brasil – que continuará na ordem do dia quando mensalões e caixas 2 já tiverem regredido para o fundo do palco da mídia – aconselha aproveitar toda oportunidade para incorporar ao debate a respeito um número cada vez maior de pessoas.

Por isso – e pelo fato de o Valor, embora um jornal de circulação relativamente restrita, permitir apenas aos assinantes o acesso à sua edição eletrônica – acho oportuno transcrever o artigo de hoje, na coluna Política, do seu repórter Ricardo Balthazar, intitulado “O Bolsa-Família e a retórica da reeleição”.

A propósito, caso algum leitor queira comentar diretamente com ele as suas opiniões, o endereço é ricardobalthazar@valor.com.br

Eis o artigo:

“Em outubro de 2003, quando o programa Bolsa-Família foi lançado pelo governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vivia um momento bem diferente do atual. Desacertos em várias áreas alimentavam a imagem de incompetência da sua administração, mas muita gente ainda acreditava na sua capacidade de recuperação. O valerioduto já havia distribuído mais de R$ 28 milhões aos partidos que o apoiavam, mas àquela altura poucos sabiam que isso estava acontecendo.

Lula fez um discurso humilde no lançamento do Bolsa-Família. Começou agradecendo a colaboração que recebeu dos governadores no desenho do programa, e fez questão de homenagear um adversário político ao aplaudir um deles, o tucano Marconi Perillo, de Goiás. O presidente reconheceu a contribuição das iniciativas do governo Fernando Henrique Cardoso na área social e descreveu o Bolsa-Família com alguma modéstia, como uma ‘grande evolução’ dos programas anteriores e um ‘embrião de uma coisa que poderemos aperfeiçoar’.


Lula também demonstrou que tinha clareza sobre os limites do que estava fazendo. Destacou como ‘o mais importante de tudo’ o incentivo embutido no programa para que as famílias pobres invistam na educação e cuidem da saúde das crianças. Lula lembrou-se de uma canção de Luiz Gonzaga que conheceu na infância e reproduziu seus versos mais contundentes como se fossem um alerta para o governo: ‘Uma esmola, a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão.’


Há duas semanas, Lula voltou a discursar sobre o tema, na abertura de um seminário organizado pelo governo para comemorar o segundo aniversário do programa. Ele afirmou que o êxito da iniciativa lhe permite ‘dormir todos os dias com a consciência tranqüila’. O presidente está certo de que o Bolsa-Família é ‘o mais importante programa de transferência de renda do mundo’ e deseja exportar a idéia. Em certo momento, chegou ao ponto de desafiar outros países para que ‘façam igual ou melhor’.


Lula não tem dúvidas a respeito dos resultados positivos do Bolsa-Família e agora faz questão de menosprezar quem manifesta opinião diferente. ‘O que menos me incomoda é saber se [o programa] é assistencialista ou não’, disse durante o seminário. ‘Nosso papel não é ficar discutindo filosofia.’ E acrescentou: ‘Se a gente entrar no debate academicista, se ele é assistencialista ou não, se ele é estruturante ou não, a gente não vai terminar nunca.’


Apesar do avanço do Bolsa-Família nos últimos anos, existem dúvidas a respeito dos resultados que ele alcançou. O programa paga benefícios de R$ 15 a R$ 95 todo mês a 8 milhões de famílias pobres, aliviando as dificuldades que elas enfrentam, mas especialistas acreditam que ele tem contribuído pouco para ajudar essas pessoas a mudar de vida. De acordo com essa avaliação, o Bolsa-Família só produzirá um impacto significativo no combate à pobreza se for acompanhado por programas de geração de renda e investimentos na melhoria do ensino público e na oferta de serviços para as comunidades carentes.


Satisfeito com os números do Bolsa-Família, Lula parece achar perda de tempo ouvir os críticos. Não é difícil entender as mudanças de tom e conteúdo que separam os dois discursos do presidente sobre o assunto. Dois anos atrás, ele estava preocupado em acertar o passo de sua administração e agradecia toda ajuda que pudesse obter. Agora, sua retórica é a do candidato em campanha pela reeleição. Com a popularidade em queda e a oposição no seu encalço, Lula tenta se agarrar a qualquer coisa que possa ampliar suas chances no ano que vem.


A auto-suficiência de Lula é preocupante. No fim do ano passado, quando denúncias de fraudes no cadastramento dos beneficiários do programa arranharam sua credibilidade, Lula reconheceu a relevância dos problemas apontados e a necessidade de corrigi-los. ‘Achei que essa matéria que saiu na televisão […] foi importante para nós’, disse numa reunião do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). ‘Temos que aprender a aceitar as coisas como elas são.’


Há duas semanas, a conversa era outra. ‘De vez em quando, alguém vai pegar uma falha numa cidadezinha qualquer e vai tentar dar uma dimensão nacional’, discursou. Lula recomendou aos auxiliares que levem as críticas ‘a sério’, mas logo em seguida sugeriu que elas não valem nada diante dos números vistosos do Bolsa-Família. A administração do programa melhorou nos últimos tempos. Mas comentários desse tipo são a melhor coisa que Lula poderia fazer para que sua iniciativa mais ambiciosa na área social saia dos trilhos novamente.”

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