O leitor deve estar perplexo. O Estado banca hoje na primeira página que “Dirceu deve sair”. Só se for da Casa Civil, porque, dentro, o jornal diz que “de jeito nenhum” (palavras do ministro) ele deixará o governo.
O Globo dá em manchete que “Lula já discute saída de Dirceu do governo” e que ele teria dito ao presidente que o seu ciclo no Planalto terminou. Dentro, a coluna Panorama Político informa que Dirceu “não vai abandonar a luta, nem o presidente Lula pode abrir mão de sua colaboração”.
Informa ainda que na reunião de Lula com assessores, domingo de manhã, “concluiu-se que sua saída desarmaria a militância petista, criaria um fosso entre o PT e o governo e representaria uma capitulação da qual se aproveitaria a oposição para aumentar sua ousadia”.
O Valor, ao noticiar o encontro do presidente com o ministro, ontem à noite, lembra que “Dirceu manifestara a intenção de se demitir do cargo para se defender, no Congresso, das denúncias de Jefferson”.
E a Folha, no título da menor e mais discreta das matérias dos jornais de hoje sobre o movimentado domingo político em Brasília, diz que “Dirceu deve ficar no cargo”. No texto: “A eventual saída de Dirceu do cargo foi descartada, segundo a Folha apurou. O ministro disse a interlocutores que sair do cargo agora seria como “passar recibo…”.”
O leitor pode não saber, mas o destino de Dirceu varia conforme os interlocutores dos repórteres, já não bastasse o aparentemente volúvel estado de espírito do próprio ministro. No círculo íntimo de Lula, quem quer que Dirceu saia vende o peixe de sua saída. Quem quer que ele fique, o peixe de sua permanência.
Nada mais normal em política. Mas os jornais, mesmo não podendo identificar as fontes que dizem uma coisa ou outra, deviam alertar o leitor para os interesses divergentes que alimentam o noticiário.
Não basta escrever, por exemplo, “segundo a Folha apurou”. O certo seria “segundo a Folha apurou junto a uma fonte do Planalto que deseja que Dirceu fique”, ou coisa parecida. E vice-versa.
No noticiário do hoje, apenas uma dessas fontes aparece, com nome e sobrenome, não só defendendo a permanência de Dirceu, mas dizendo por que seria ruim para o governo e para ele se reassumisse agora a sua cadeira de deputado. É – quem diria! – aquele que o PT queria derrubar para devolver as suas funções ao titular da Casa Civil: o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo.
Caindo em tentação
Na primeira página e dentro, a Folha de hoje mancheteia que o governo “tenta desqualificar” as acusações de Jefferson.
Todo jornalista que já perdeu os dentes de leite deve saber que o verbo tentar é interpretado pelo leitor como sinônimo de não conseguir – e é quase sempre usado na mídia com essa intenção depreciativa. Como em “Governo não consegue desqualificar as acusações”.
Não é correto dizer que o governo tenta desqualificar. O governo desqualifica — o que não supõe necessariamente que a desqualificação tenha fundamento. O correto é dizer apenas o que o governo fez.
Para ficar claro. Qual o título jornalisticamente mais isento e objetivo? “A diz que B é corrupto e B nega”? Ou: “A diz que B é corrupto e B tenta negar”?
A tentação em que caiu a Folha pode dar ao leitor atento a impressão de que o jornal, o único que Jefferson escolheu para as suas denúncias, se associou a elas, precisamente por isso.
Se o governo, ou quem quer que seja, eventualmente provar que Jefferson mentiu, o jornal perderá pontos por ter dado tanto destaque ao que ele lhe contou como se fosse verdade – ou tentou contar como se fosse verdade, diria um maldoso.