Fosse na Inglaterra, a dupla que tentou vender por R$ 500 mil ao Estado de S.Paulo cópias roubadas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), marcado inicialmente para este fim de semana, teria procurado um tablóide, como o Sun de Londres, o diário de maior circulação do Ocidente, com 5 milhões de exemplares.
O Sun faria de bom grado um acordo com os vazadores da prova, pelo qual eles seriam pagos se o material se revelasse verdadeiro. O pasquim daria um jeito de publicar no dia do exame uma versão cifrada das questões, para poder apregoar, depois, que estava de posse dos originais do teste.
A operação teria lá suas complicações, mas não seria impossível para quem é do ramo do jornalismo de esgoto, está acostumado a comerciar com a escória e faz fortuna jogando escândalos no ventilador.
E que escândalo, no caso!
Mais de 4,1 milhões de estudantes se inscreveram para o Enem, que pela primeira vez substituiria o vestibular para o ingresso em 28 universidades federais.
O exame seria inevitavelmente anulado e cabeças rolariam no Ministério da Educação – a do ministro, em primeiro lugar.
Aliás, para fazer propaganda de sua mercadoria, foi o que disse um dos tipos que procuraram o Estadão: “Isto aqui é muito sério, derruba o ministério”. No relato do jornal, o outro atalhou: “Não tenho motivação política.” Não ficou claro qual dos dois se saiu com esta: “Ninguém aqui é bandido, ninguém tem ficha na polícia, nós dois temos emprego.” O negócio deles era só fazer um grande negócio.
A julgar pela matéria dos repórteres Renata Cafardo e Sergio Pompeu, “Prova do Enem vaza e ministério anuncia cancelamento do exame” – que obrigou o jornal a atrasar em mais de duas horas o fechamento da edição desta quinta-feira, 1 – os caras são uns aloprados. Devem ter achado que, para pôr o governo numa fria, o Estado desembolsaria, se não o meio milhão pedido, uma bolada próxima disso. Não sabiam que a grande imprensa brasileira pode ser acusada do que se queira, menos de pagar por informações.
A oferta foi feita num telefonema, na quarta à tarde. À noite, os repórteres se encontraram com o sujeito. Onde? Tudo que a matéria diz é “na zona oeste de São Paulo”.
O cidadão se identificou? Não se sabe. “O homem que telefonou para a redação estava acompanhado de outra pessoa”. Foram fotografados? Tampouco se sabe. Que aspecto têm? Idem.
Os repórteres consultaram rapidamente o material, “sem se comprometer com a compra”, memorizaram (ou anotaram) alguns quesitos da prova. O jornal entrou em contato com o ministro Fernando Haddad por telefone e e-mail. “As questões originais estavam guardadas em um cofre, que foi aberto ontem à noite para confirmar a informação”.
Não fica claro em que momento disseram aos vendedores que não haveria negócio. Mas relatam que um deles se irritou e disse que iriam procurar uma emissora de TV. “A gente vende isto aqui até por mais dinheiro”, disse, em desespero de causa.
“A nossa sorte”, comentaria ainda na quinta-feira o ministro, numa entrevista à Rádio Eldorado, do Grupo Estado, “é que as pessoas que cometeram o crime eram amadoras”.
Disse ainda: “O jornal, com a experiência que tem, imagino que deva ter se cercado de providências. O apelo que eu fiz ao diretor de Redação, Ricardo Gandour, é que colocasse em pauta na redação a necessidade de chegar a essas pessoas”. E mais: “O jornal nos deu elementos muito importantes para a identificação dos criminosos.”
Ótimo, palmas. Isso é que é jornalismo-cidadão. Mas o compromisso primário de um jornal é com os seus leitores. Eles têm tanto direito quanto o ministro a esses “elementos muito importantes” – que, salvo engano, não estão todos na matéria que denunciou o vazamento.
P.S. “É grana, é grana” [Acrescentado às 8h55 de 2/10]
A história oficial, por assim dizer, da tentativa de venda da prova do Enem, está na matéria “Por dinheiro, dupla abala a vida de 4 milhões de jovens”, contada pelos jornalistas Renata Cafardo e Sergio Pompeu no Estado de hoje. [Alguns trechos foram destacados em negrito pelo blogueiro.]
“Os dois homens que derrubaram o exame que custou cinco meses de preparação para mais de 4 milhões de jovens brasileiros sabiam da importância do material que tinham em mãos: as duas provas do Enem que seriam aplicadas neste fim de semana. ‘Isso aqui derruba um ministério.’ Viram ali a chance de ganhar um bom dinheiro. ‘Queremos R$ 500 mil.’ Mas a estratégia parecia primária.
Em nenhum momento eles deram seus nomes ao Estado e por isso serão identificados no texto como ‘Informante’ (a sugestão partiu dele mesmo) e ‘Sócio’. Os dois tentaram o tempo todo posar de bons moços. ‘Já participei de concursos, também fico revoltado com essas coisas. Meu irmão, de 16 anos, vai fazer a prova’, disse o Informante. ‘Isso (a prova) já está na mão de um monte de filho de parlamentar lá em Brasília’, completou Sócio.
O primeiro contato com a redação foi feito pelo Informante, às 15h30 de anteontem. ‘Tenho uma informação sobre o Enem’, disse, num telefonema. ‘Tenho a prova toda, 180 questões, já impressas.’
Deixou bem claro que queria ‘negociar’. Deu um número de celular.
A reportagem falou quatro vezes com o Informante durante a tarde. Ele exigiu um encontro em um local público, quando mostraria a prova e daria detalhes de como a conseguiu. Indicou que cor de roupa usaria, uma jaqueta preta. Aceitou o lugar indicado pelo Estado, um café na zona oeste, mas o horário foi mudado duas vezes. Por fim, ficou determinado que seria às 19h15.
A equipe do jornal (os autores do texto e o repórter fotográfico Evelson de Freitas) chegou ao local com antecedência. Enquanto esperava, Informante telefonou duas vezes: tinha se perdido. Avisou que teria o apoio de pessoas que ficariam do lado de fora do café. Mas o primeiro a aparecer foi um homem moreno, aparentando 30 e poucos anos, vestido com uma jaqueta amarela, com capuz. Era o Sócio.
A primeira providência de Sócio foi perguntar se os jornalistas tinham levado gravador. Enquanto isso, Informante chegou e sentou-se à mesa. Também moreno, de olhos claros, vestia a tal jaqueta preta e usava boné. Levava uma pasta de material sintético.
‘Uma pessoa do Inep, do MEC, tirou isso lá de dentro e passou para uma pessoa que a gente conhece’, disse Sócio. ‘Chegou por acaso’, completou Informante.
Ele garantiu que não teve acesso ao responsável pelo vazamento da prova. ‘Não é nosso trabalho, eu sou funcionário público, ele (Sócio) também trabalha. Não tem nada a ver com a gente isso aí. A gente tá meio perdido.’
A reportagem pediu para ver a prova. Mesmo sem nenhuma garantia de que haveria pagamento, Informante tirou o caderno de prova de uma pasta e o colocou na mesa. Não se importaram em falar baixo ou se havia outras pessoas ao lado.
Passou primeiro a folha de rosto, com instruções gerais sobre o tempo de prova, o preenchimento do gabarito e outras informações para o candidato.
Tinha os logotipos do MEC e do Inep, no canto inferior esquerdo, a relação das empresas do consórcio contratado para a realização da prova e um número 2: era o exame de domingo, com 90 questões de Linguagem e Matemática.
A dupla se recusou a mostrar aos repórteres a folha com o tema da redação. ‘Se não, amanhã você escracha no jornal’, disse Sócio.
Um pequeno lacre que provavelmente identificaria a numeração da prova havia sido recortado.
A reportagem pediu para ver as questões. Informante permitiu ao Estado folhear o caderno por uns dois minutos. Tempo mais que suficiente para identificar meia dúzia de questões e memorizar itens associados a eles.
O primeiro item do Enem reproduzia uma tira de história em quadrinhos da personagem Mafalda. Nas folhas seguintes estavam os dois itens apontados horas depois pelo presidente do Inep, Reynaldo Fernandes, como a comprovação de que o exame era verdadeiro: o poema Canção do Exílio e uma imagem da bandeira do Brasil com o verde suprimido, simbolizando o desmatamento.
A prova também tinha um texto da revista Veja sobre o filme Touro Indomável, uma tira do gato Garfield, uma questão que mencionava o MSN (sistema de mensagens online) e outra que citava os versos de Carlos Drummond de Andrade: ‘No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho’.
‘Agora já viu demais’, decretou Sócio. Era hora de falar de dinheiro. Os dois bateram o pé no meio milhão de reais. Diziam que o dinheiro seria dividido entre cinco pessoas. A reportagem tentou argumentar que denunciar o vazamento da prova era uma questão de utilidade pública.
‘Utilidade pública não paga meu salário’, retrucou Sócio. ‘É grana, é grana.’
Informante, sempre mais educado, tentou mostrar que a transação valia o que os dois pediam. Disse que o jornal receberia os originais das provas de sábado e domingo, cópias dos exames registradas em cartório e até uma breve descrição de como o material chegara até eles. Explicou que tinham a assessoria de um advogado que também os orientaram a comprar um chip de celular para os contatos.
‘Tudo isso que a gente tá fazendo é com orientação jurídica’,
disse Informante.
Ele queria o pagamento em dinheiro e mencionou até um contrato que garantiria o ‘sigilo da fonte’ – entendimento jurídico de que o jornalista tem o direito de preservar as fontes de suas informações.
Durante a conversa, Sócio citou a questão do sigilo como argumento para a escolha de veículos de imprensa para a venda das provas.
‘A última coisa que a gente vai fazer é bater na porta do PSDB. Ano de eleição. A última saída vai ser essa’, completaram.
A reportagem enviou um e-mail ao ministro da Educação, Fernando Haddad, com exemplos de questões e em quais páginas apareciam na prova.
O próprio ministro informou à reportagem sobre toda a movimentação em Brasília para confirmar a autenticidade do exame.
Nem o ministro nem o presidente do Inep tinham visto a prova, até então.
Três funcionários foram levados ao Inep para abrir o cofre em que estavam guardadas as questões. Não havia uma prova impressa e, sim, as 180 perguntas digitalizadas.
Cerca de quatro horas depois do primeiro contato da reportagem com o ministério, por volta da 1 hora de ontem, o presidente do Inep ligou para o Estado e confirmou que a prova tinha vazado.
‘Há fortes indícios de vazamento, 99% de chance.’ O Enem estava cancelado.”
Comentário final: mesmo que o objetivo primeiro dos jornalistas, ao procurar o MEC, fosse o de alertá-lo para o vazamento, “por ser uma questão de utilidade pública”, como disseram aos seus interlocutores, a iniciativa se impunha profissionalmente; de outra forma, eles não teriam como saber se o material que lhes foi mostrado era autêntico. Fizeram a coisa eticamente certa, portanto, ao fazer a coisa jornalisticamente certa.
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