“Governo detecta recrutamento de jovens pelo Estado Islâmico no Brasil.” Este título de alto de página publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo no domingo (22/3, pág. A13), com direito a manchete de capa, tem todos os ingredientes para causar preocupação na maioria dos leitores. Quem se deixou levar pelo impacto imediato da informação provavelmente não se deu conta do viés informativo e nem das distorções que ela poderia provocar no imaginário dos leitores do Estadão.
A notícia foi baseadA num relatório intitulado “Estado Islâmico – Reflexões para o Brasil”, de autoria não identificada e supostamente preparado por um organismo de segurança, também não identificado. Este e outros relatórios sobre a organização terrorista teriam sido discutidos numa reunião na Casa Civil no Palácio do Planalto. Os repórteres do Estadão afirmam que este e outros relatórios visavam alertar a presidente Dilma Rousseff sobre os riscos de atentados terroristas nas Olimpíadas de 2016. Ainda sem identificar fontes, o texto diz que o Estado Islâmico (EI) estaria interessado em ampliar suas ações para a América Latina.
No sexto parágrafo, um leitor experiente detecta um dos objetivos do texto: dar visibilidade a supostas queixas da Agência Brasileira de Inteligência e da Polícia Federal sobre a necessidade de uma nova legislação para repressão de atos terroristas no país. No antepenúltimo parágrafo, o jornal, ainda sem citar fontes, diz que dez jovens brasileiros estariam fazendo propaganda do EI nas redes sociais.
Quem confiou no jornal e nos repórteres tem uma enorme surpresa no último parágrafo da matéria. O entretítulo “Casa Civil diz que assunto não foi debatido na reunião” destrói a veracidade da notícia e põe por terra todas as hipóteses levantadas pelo texto. A Casa Civil nega inclusive que tenha havido uma distribuição de relatórios sigilosos sobre o Estado Islâmico. Se a informação da Casa Civil é verdadeira, então a notícia não tem base real. Se o Planalto escondeu a verdade, então era obrigação dos repórteres e do jornal desfazer a manobra e mostrar suas razões reais. Mas nada disso foi feito.
Uma notícia como esta, consumida sem o apoio da leitura crítica, pode induzir o leitor à falsa ideia de que estamos a beira de um ataque terrorista do Estado Islâmico no Brasil, que as Olimpíadas de 2016 serão um chamariz para os chamados “lobos solitários” (terroristas que agem sozinhos) e que há necessidade de um endurecimento das leis antiterror no país. Mais do que isso, evidencia como a técnica de enviesar uma informação de acordo com a perspectiva do repórter, do jornal ou da fonte pode criar um factoide com aspecto de fato verídico.
Quem publicou esta notícia não estava preocupado com o leitor e sim com a fonte – no caso, os serviços de inteligência e a Policia Federal. Os manuais de redação garantem que a função do jornalista e do jornal é oferecer dados ao leitor para que este possa tomar decisões conforme seus desejos e necessidades. Como alguém pode ser um bom cidadão quando é induzido a criar uma falsa percepção da realidade?
O Observatório da Imprensa, há 18 anos, na luta por uma imprensa melhor . Muita coisa já evoluiu, mas quando comparamos o que existe com o que seria necessário, vemos que a distância em vez de diminuir, aumentou. O grau de exigência do público cresceu muito mais do que a capacidade dos jornais, revistas e telejornais em atendê-lo. E não é só por culpa das redações e dos executivos. A tecnologia avançou muito mais rápido do que a capacidade editorial e gerencial dos responsáveis pela imprensa.
A combinação de deficiência humana com a avalancha de inovações tecnológicas cria para o leitor, ouvinte, telespectador e inclusive internautas a sensação de que não temos mais onde buscar informações. Sensação esta que é reforçada quando alguém perde alguns minutos para examinar criticamente uma notícia como a que acabamos de analisar. É o sinal dos tempos e um sintoma inquietante da mudança de paradigmas que estamos vivendo.
Se por um lado a tecnologia está atropelando a imprensa, esta contribui ainda mais para aumentar brecha informativa entre o que leitor quer saber e o que lhe é oferecido na forma de notícias enviesadas que só contribuem para incentivar o descrédito do público. Notícias como a publicada pelo Estadão sobre uma hipotética ação futura do Estado Islâmico no Brasil mostram como é essencial adotar a leitura crítica na nossa rotina diária no contato com a imprensa.