O jornalista econômico Luís Nassif usa a sua coluna de hoje na Folha para falar do “vôo do general”, como intitulou o seu texto.
Até aí tudo bem. Sou daqueles que acham que jornalistas tarimbados e com “redação própria”, como o ofício designa os seus praticantes dotados de idéias pessoais e independência profissional, podem perfeitamente bem enveredar por assuntos sobre os quais tenham o que dizer, mesmo quando distantes das suas especialidades e até no lugar reservado à abordagem dos temas de área específica – no caso de Nassif, a economia. Em geral, é lucro para o leitor.
Mas ao tratar da carteirada aérea do comandante do Exército, general Francisco de Albuquerque, o colunista destampou sem querer um problema complicado, que tem a ver em última análise com ética jornalística e credibilidade da mídia – o que o deixou mal na foto.
O que Nassif fez foi dar voz a uma fonte que argumenta em favor do carteireiro de quatro estrelas, colocando-se na contramão da maioria. Para não ir mais longe – às seções de cartas dos jornais – basta ver quantos leitores deste blog aproveitaram um comentário meu sobre a falta grave de um jornalão ao noticiar o caso, para desancar não o jornal mas o general.
Até aí tudo bem também. Diversidade de opiniões devia ser prato obrigatório no cardápio cotidiano da imprensa. Além do mais, como dizem os americanos, sem essa diversidade não haveria corridas de cavalos.
A coisa se complica, porém, quando o defensor do general não só aparece sem nome e sobrenome diante do leitor, mas, principalmente, quando o colunista a ele se refere como “sábio”.
Parênteses: desconfio que o “sábio recluso”, como Nassif o identifica, digamos assim, por inteiro é o mesmo personagem que de vez em quando frequenta outra coluna da Folha, a do repórter Clóvis Rossi, que não o chama de recluso, mas de velho e indica que ele habita o mesmo jornal. Ou muito me engano ou o velho sábio recluso é o dono da Folha, Octávio Frias de Oliveira. Fecha parênteses.
E daí? Daí que, primeiro, é legítimo e em muitos casos necessário publicar informações de fontes não identificadas (“em off”, como se diz) porque de outro modo elas não chegariam ao público, em seu prejuízo. Uma denúncia fundamentada de corrupção, por exemplo, merece ser dada mesmo quando o denunciante não pode assumir a sua paternidade.
Mas outra coisa é publicar pensatas – idéias acompanhadas ou não de juízos de valor – “em off”. Se a fonte e/ou o jornalista que a ouviu não querem que o leitor saiba quem é o opinionista, talvez devessem guardar para si os pensamentos dele.
Porque para o leitor formar a sua própria opinião sobre a opinião alheia, é fundamental que tenha a oportunidade de saber de quem se trata. Uma informação objetiva, que o leitor pode conferir por si só, como a temperatura da cidade em dado momento, tanto faz que tenha ou não autoria. Mas é uma questão em aberto se uma opinião sobre um assunto de peso pode vir sem assinatura.
Argumentos consistentes valem por si sós, sem dúvida. Mas, insisto, o leitor tem o direito de saber de onde vêm, porque, conforme a autoria, ele poderá acolhê-los pelo seu valor de face ou com o proverbial grão de sal.
Não posso dizer, muito menos insinuar, que o “sábio recluso” é suspeito para defender o general. Se nem sei quem é! Mas eu, leitor, julgaria melhor por mim mesmo se soubesse.
Naturalmente, não faria a menor diferença se o “sábio” achasse que o militar cometeu um delito infamante com a carteirada graças à qual pode afinal viajar no vôo em que tinha lugar marcado.
Pensatas de autoria desconhecida, sejam quais forem, fazem mal à credibilidade de quem as publica – e ponto.
Só que o problema não acaba aqui. O seu lado mais grave, a meu ver, está na palavra “sábio”. Ao usá-la para caracterizar um atributo – e que atributo! – da fonte anônima, o colunista está indicando ao leitor que ela sabe o que diz. Indica também que sabia o que fazia ao buscar e colocar em letra de forma o pensamento vivo do seu sapiente interlocutor.
Isso engrandece os argumentos publicados – afinal, são os de um “sábio” – e a iniciativa do jornalista de colhê-los e publicá-los.
Uma coisa e outra cumprem um papel perante o leitor, qualquer que tenha sido a intenção do jornalista ao se abeberar da fonte sapiente.
Trata-se, para usar uma das mais pedantes expressões em inglês-sociologuês que conheço, daquilo que um dos pioneiros do estudo da comunicação de massa, Paul Lazarsfeld, chamou muitas décadas atrás de “status conferral function”, como um dos efeitos da mídia. Ou seja, a função de atribuir estatura, valor, mérito a pessoas, instituições e à própria imprensa, pela forma com que se leva o leitor a percebê-las.
No caso, o colunista conferiu status às idéias da sua fonte, ao dizer já na primeira linha do texto que ela é sábia – e a si mesmo como profissional, que merece ser lido porque sabe escolher, para servir ao leitor, o que decerto há de mais apetitoso no mercado de idéias sobre um tema que mexe com a opinião pública.
P.S. Por falar em pedantismo, vale a pena ler de novo o seguinte bestialógico produzido ontem pelo quase ex-deputado Professor Luizinho, do PT: ‘O aprendizado obtido no processo no qual a solidaão da alma é a busca incessante da luz para reconstituir o processo da dor vivida é sobrehumano, mas vale a pena, quando se confiam nas mulheres e homens que nos olham, que sob a luz dos mandamentos da Justiça e com o acompanhamento de Deus darão o seu voto.’ Tudo isso para dizer ‘pelo amor de Deus não me cassem’.
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