A “guerra da Rocinha” é hoje a questão decisiva da segurança pública no Rio de Janeiro porque a Rocinha é, como diz o editor de um jornal carioca, o Kuwait da cocaína na cidade. A Rocinha é uma grande empresa. Faz o marketing de vender a cocaína mais pura da cidade. Tem um sistema azeitado de entrega (“delivery”). Tem uma rede grande de assistência social. O editor calcula que na Rocinha sejam feitos por varejo e atacado, 25% dos negócios da cocaína na cidade. A situação divide opiniões entre a elite da cidade: um grupo importante de pessoas, várias delas com papel destacado na mídia, está convencido de que é melhor manter uma espécie de acordo tácito com o crime organizado, porque o enfrentamento seria pior. Outro grupo, polícia incluída, discorda. O Exército, na época da Rio-92, chegou a fazer um plano de Estado-Maior para destruir militarmente o tráfico nos morros cariocas. Seria uma carnificina impensável.
A tentativa de retomada de controle da Rocinha por um grupo criminoso feita na noite de quinta-feira (16/2) tem a mesma natureza da que ocorreu em abril de 2004, quando, entre outras tragédias, uma mulher que passava de carro com o marido e três sobrinhos pela Avenida Niemeyer, Telma Veloso Pinto, foi morta. Em duas semanas daquele mês de abril morreram 12 pessoas. Os bandidos partiram do vizinho Morro do Vidigal. Em 2006, vieram, como da outra vez, de várias favelas, mas se reuniram na do Pavão-Pavãozinho. Seis mortos. O Globo calcula 100 mortos ou desaparecidos em 20 anos. Não vai parar nisso.
A informação sobre “guerra da Rocinha” não é de boa qualidade e não ajuda a população a entender o que ocorre. Os jornalistas não conseguem nem sequer chegar a um acordo quanto ao número de habitantes do bairro, que varia de 56 mil (Censo do IBGE, citado na coluna de Míriam Leitão no Globo de sábado, 18/2) até 200 mil (O Globo, 19/2), com estágio intermediário em “100 mil a 120 mil”, segunda a vereadora Andrea Gouvêa (M. Leitão, mesma data).
As autoridades dizem que a Polícia evitou o pior na quinta-feira passada. O Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio, Marcelo Itagiba, afirma (site da SSP-RJ) que os “bandidos contaram com apoio interno de pessoas que desejam ver outra facção criminosa dominando a favela”. O principal líder comunitário local, William de Oliveira, presidente da União Pró-Melhoramentos da Rocinha, não foi ouvido por nenhum jornal. Ele esteve preso com policiais e um capitão do 23° Batalhão da Polícia Militar, responsável pela área em que fica a Rocinha. Todos acusados de ter ligação com o tráfico. Não deve ser difícil ter acesso a ele. William foi entrevistado pelo Globo em reportagem sobre áreas sob risco de deslizamentos no Rio publicada na véspera (15/2) do ataque.
Os fatos chegam a ser noticiados, mas sem a devida articulação. Por exemplo, no dia 14 um cabo do Exército foi morto no Morro do Vidigal durante operação para buscar armas pesadas (notícia dada no dia 16, o dia da tentativa de invasão). No dia 17, em página próxima à do noticiário sobre a nova invasão da Rocinha, o Globo informou que a polícia prendeu em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Bruno Rogério de Almeida Tavares, o “principal fornecedor de cocaína para uma facção criminosa do Rio” (o Globo não nomeia as facções). Onde Bruno, segundo a polícia, comprava a cocaína? Sem novidades: em São Paulo. E não se publica nenhuma notícia vinda de São Paulo.
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A mídia não consegue parar para fazer um retrato mais preciso da realidade do tráfico no Rio, o que seria indispensável para minimamente avaliar o trabalho da polícia, acusada de ser inepta e de fornecer quadros para o crime.
Duas principais razões são apontadas por jornalistas do Rio. Primeira, ninguém reflete direito sobre o problema. Trabalha-se de uma forma factual. Falta articulação e reflexão ao trabalho jornalístico. Segunda, o próprio e incontornável factual, o ritmo dos episódios criminosos que se sucedem nas favelas e no asfalto do Rio. Um caso atrás do outro. Não dá tempo para pensar.
Acrescente-se que existe uma politização exacerbada da questão da segurança pública no Rio de Janeiro. O caso da “Corefolia”, festa promovida por agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), é típico. Fez-se um estardalhaço por causa da festa, mas ela não teve nada a ver com a invasão da Rocinha. Foi feita no dia seguinte. Como o governo Garotinho-Rosinha é antagonizado pelo Globo, virou reportagem, até manchete de primeira página, notícia no Jornal Nacional. Pura agitação.
Neste domingo, o Globo volta a um tema que serve para fustigar o governo: o desentrosamento dos serviços de inteligência da polícia. Em plena era da telemática, o subtítulo da reportagem (19/2) é assim: “Subsecretaria fica em prédio separado da Secretaria de Segurança, o que prejudica comunicação entre os setores”. Tenham a santa paciência: nem quando os telefones do Rio levavam uma hora para dar linha a distância física chegou a ser problema. O problema não é o que se desconhece. O problema é o que se conhece: o poder das armas e do dinheiro.
E daí se chega à intimidação. Desde o assassinato de Tim Lopes, há três anos e meio, a mídia carioca recuou. Evita entrar em “zonas conflagradas”. Desde novembro, o jornal O Dia está com segurança reforçada da Polícia Militar. O Disque-Denúncia teria detectado ameaça de atentado à sede da empresa, em represália contra uma série de reportagens sobre o tráfico de drogas no Morro da Providência.
Na fronteira do México com o Texas jornais adotaram a estratégia do silêncio, porque a polícia está envolvida demais com as poderosas gangues que operam a passagem da droga pela fronteira. Não adiantou. No mais recente episódio, bandidos invadiram atirando o jornal El Mañana, de Nuevo Laredo.
Ah, sim. Há mais uma ponta solta na história, que nos remete de volta ao começo: o consumo. Quem consome a cocaína. Reina piedoso silêncio sobre o assunto. Não existe, ao que se saiba, nenhuma política séria para reduzir o consumo, sem o qual a Rocinha teria que repensar inteiramente o seu modelo socioeconômico. Nem política, nem noticiário.
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