Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O leitor escreve: Espetaculismo e falta de vergonha – semanários no picadeiro da notícia

A crise política que o Brasil hoje enfrenta remete a momentos recentes da história brasileira em que vivíamos outras crises motivadas por escândalos muito semelhantes aos atuais.

Em 13 de maio de 1997, o jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, iniciou uma série de reportagens/matérias que ganharia o Prêmio Esso daquele ano, batizada “O Mercado do Voto”.  O tema: a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), cuja base de apoio abrangia o PFL, o PMDB, o PTB (este praticamente durante os dois mandatos do ex-presidente), o então PPB (hoje PP, ao menos no apoio dito “programático”, como a minirreforma da Previdência e a reforma administrativa sob a égide de FHC), entre outros. A síntese: dois deputados do PFL (quem diria, justo o PFL de Rodrigo Maia, Onyx Lorenzonni, ACM Neto…) do Acre, João Maia e Ronivon Santiago, teriam confessado, inclusive em conversas gravadas com um misterioso e até hoje anônimo “Senhor X”, que haviam recebido a módica quantia de R$ 200 mil reais para votarem a favor da emenda constitucional que permitiria a reeleição do então primeiro mandatário. Segundo eles, teriam participado ativamente das negociações o Ministro das Comunicações Sérgio Motta, principal articulador político de FHC e de seu partido, o PSDB, com o Congresso, além do governador do estado do Acre, Orleir Camelli, então sem partido, e do governador do estado do Amazonas, Amazonino Mendes (também do PFL!).

Além do dinheiro, pago em duas parcelas, houve suspeita de negociações de cargos com outros partidos (como, por exemplo, o deputado Íris Rezende, do PMDB, nomeado ministro da Justiça após votar a favor da reeleição, mesmo tendo se mostrado, ele e vários outros deputados de Goiás sob sua liderança, contrário ao projeto durante sua tramitação), liberação de verbas e concessões de rádio e TV em troca de apoio no Legislativo  etc. Até hoje, não se investigou a origem do dinheiro que gerou o negócio – assumidamente verdadeiro até para o PFL, que expulsou os dois deputados confessionários em rito sumário, após à divulgação das gravações no jornal Folha de S. Paulo.

Dois dos mais importantes semanários do país, as revistas Veja e Istoé, não gastaram manchetes com o caso. De 13 de maio de 1997 até dois meses adiante, acessando o sítio eletrônico das revistas, podemos encontrar as seguintes capas/manchetes:

   Veja


































































































‘O Grande amor de Juscelino” “Reeleição”
‘Da cervejinha ao alcoolismo’ “A arrancada de Guga”
14/05/1997 21/05/1997 28/05/1997 11/06/1997*  
 

“As ações fazem a festa”


“O quente do inverno”

“Evangélicos” 


“A Ressureição de Che”
18/06/1997  25/06/1997   02/07/1997       09/07/1997 


“O centro da explosão”


“O Misterioso Leonardo”


“Sem tempo para os filhos”


“O liberal linha-dura”
  16/07/1997 23/07/1997 30/07/1997  06/08/1997

Istoé
     

“Vícios da Mulher”


‘Deputados comprados vieram com defeito’

“Curandeiros”

“O Amor que destrói”
14/05/1997       21/05/1997       28/05/1997       04/06/1997      

“A vida antes da fama”

“FHC abre o jogo”


“Os 50 anos do ET- Realidade ou ficção?”

“Sou gay e daí?”
11/06/1997 18/06/1997 25/06/1997 02/07/1997


“Como se fabrica uma modelo”

“Cazuza”

“Procura-se”


“E o país pega fogo”
09/07/1997 16/07/1997 23/07/1997 30/07/1997

Em Veja, a única manchete referente ao escândalo da compra de votos para a reeleição é discreta: um close de Serjão (falecido) – acusado de ser o operador do esquema –  com a singela frase “Reeleição” abaixo, sem tornar evidente a matéria remitida pela capa.
Mais importante a discussão do fenômeno Guga, ou o acidente com um avião (que tomou duas capas, duas semanas seguidas), os elogios a uma então “eminência parda” da política econômica tucana, Gustavo Franco – que, depois de se desligar do governo, virou colunista da revista – ou a moda do inverno de 1997. Orleir Cameli, Amazonino Mendes, João Maia, Ronivon, Zilá Bezerra, Chicão Brígido e Osmir Lima não devem ser tão fotogênicos quanto Roberto Jefferson, José Dirceu, Marcos Valério…


Na Istoé, também nenhuma menção clara a compra de votos em dois meses. Cite-se que uma das edições colocou como capa a utilização do escândalo por um programa humorístico da TV, outra em que se remete a uma entrevista de FHC – defesa clara -, e nada  mais. Relevantíssimos os assuntos sobre os curandeiros, sobre as modelos, os etês…
Talvez “descolados” pela moda do espetáculo midiático, pelo potencial de vendagem de uma notícia que veicule um escândalo político, por interesses escusos e misteriosos defendidos pelos respectivos corpos editoriais, Veja e Istoé parecem ter mudado. Senão, comparemos as capas das revistas dos três últimos meses:

Veja


















Istoé


















A revista Istoé  demorou mais a se integrar ao circo da notícia, ao denuncismo pífio e pouco esclarecedor, que não colabora para que os cidadãos enxerguem de que maneira funcionam as instituições consideradas democráticas, claramente esgotadas e superadas, baseadas em eleições periódicas que apregoam lampejos de civismo inexistente, apelando para uma “patriotada” barata e pseudo-ufanista, apegando-se a argumentos fúteis e vazios. Talvez tenha válida somente a expectativa de vendagem e o aumento publicitário, senão também a curiosa atuação de um dos repórteres da publicação siamesa – Istoé Dinheiro, e seu envolvimento com a honestíssima secretária Fernanda Karina Somaggio.

Já a Veja, indiscutivelmente, vai além disso. A impressão que se tem quando se efetua a comparação da linha editorial da revista em vários momentos de crise distintos, dependendo dos protagonistas, é que o modelo atual é defendido com unhas e dentes. Além disso, nota-se, se comparando os dois episódios – a compra de votos de FHC e a compra de votos do PT -, um posicionamento político cristalino dos responsáveis pela linha editorial da revista, em defesa de alguns setores e alguns grupos no país. É nítido e óbvio o desejo de desconstruir e desestabilizar um partido – no caso, o da situação – para beneficiar outros que hoje estão na oposição – e que têm um vasto histórico, nos mesmos moldes do hoje PT governista e de oito anos de PSDB, de Partidos do Fisiologismo Livre.

Não se trata aqui, evidentemente, de defesa destes ou daqueles partidos ou grupos políticos; trata-se, isso sim, de exigir que o uso do poder da informação sirva para esclarecer os leitores, o público, de como efetivamente se desenvolve a dita democracia representativa não só neste momento e não só neste país, mas de resto em toda a chamada civilização ocidental. Para isso, Istoé e principalmente Veja têm nas mãos, assim como tantos outros órgãos de imprensa, um poderoso instrumento: a voz, ainda que escrita e não falada. Mais do que isso, a Veja têm leitores cativos que usam da revista como único meio de informação, além de rápidos excertos de rádio e TV, para posicionar-se a respeito do país e do mundo. Por tal razão, seria fundamental o resgate de outros episódios da história brasileira recente, independente dos nomes que tenham os bois, para mostrar apenas e tão somente que a o sistema político, o modelo democrático-representativo que vigora no país facilita e torna IMPRESCINDÍVEL que a corrupção granjeie. Entretanto, a revista usa de sua impressionante capacidade de influenciar (e de maneira muitas vezes decisiva) a opinião pública para desestabilizar um único partido político, um único grupo de pessoas, isentando todos os outros que ao longo dos últimos anos mostraram, por conveniência ou por necessidade, agiram exatamente do mesmo modo como age o partido situacionista do momento.

Não bastasse isso, o uso de expedientes como a colaboração de “arapongas” ou ex-“arapongas” da chamada Inteligência brasileira (SNI ou Abin) mancha ainda mais a reputação jornalística da publicação, e torna quase evidente que muitos interesses são defendidos na página da revista (que não são de interesse público) além doa mera função de informar com qualidade e isenção – palavra esta que não deve fazer parte do “manual de redação” da revista.

Resta aos leitores a missão de ler as entrelinhas nas páginas de Veja, gravar muito bem o nome dos repórteres que assinam as matérias e, como necessário com qualquer outra publicação, não permitir que haja um pensamento único, direcionado, motivado por interesses espúrios e restritos a pequenos setores ou ainda por motivações mercadológicas, de vendagem, publicitários, que se apegam ao espetaculismo e a “onda” do momento para fazer da informação e da notícia um circo, no qual os dois semanários tomam o picadeiro com a função de mestres-de-cerimônia. Mas, quem quiser enxergar, verá o verdadeiro papel: o de palhaços.

Sérgio Luiz do Prado
Professor da rede pública