A propósito da cobertura da invasão da Faixa de Gaza na imprensa brasileira, Alberto Dines exalta o “jornalismo humanista”, aquele “tão fácil de entender, tão difícil de praticar”, como escreveu no Observatório, na terça-feira, 6.
Dois dias depois, o jornal Valor ofereceria o que este blogueiro não tem a menor dúvida em considerar, até pelo que contém de pessoal, o mais luminoso exemplo de jornalismo humanista ao alcance do leitor brasileiro até aqui, no contexto da nova ofensiva do exército israelense em território palestino.
Trata-se do artigo “Do Gueto de Varsóvia ao Gueto de Gaza”, de autoria da colunista política Maria Inês Nassif. Enquanto há quem sustente que a briga é deles, não nossa, ela adverte que, embora a distância da guerra nos dá uma chance de não nos desumanizarmos, “a indiferença também desumaniza”.
O texto de Maria Inês:
”O Gueto de Varsóvia foi o maior enclave judaico estabelecido pelos alemães na Polônia, durante a ocupação nazista. Chegou a atingir a marca de 380 mil habitantes, ou 30% da população de Varsóvia, e ocupava 2,4% de seu território, separado da cidade por muros. A partir da construção do muro, em novembro de 1940, e pelo ano e meio seguinte, os judeus poloneses das cidades e vilas menores eram levados para lá – depósito dos judeus que iriam para o campo de extermínio de Treblinka e que podiam ter a sorte de escapar das câmaras de gás se morressem antes de tifo ou fome, ou simplesmente fossem atingidos nas ruas, como animais, caça dos soldados nazistas. Lá dentro, três grupos, no entanto, resistiram com pistolas, bombas caseiras e coquetéis molotov – um deles até com umas armas um pouco melhores, fornecidas pela resistência polonesa que as contrabandeava para dentro dos muros – dizem que até por túneis. Depois de seis meses de resistência, os judeus poloneses do gueto foram transferidos maciçamente para Treblinka ou simplesmente assassinados em Varsóvia.
Ao longo da história, vários guetos confinaram judeus. Existiram guetos judaicos na Alemanha e na Península Ibérica no Século XIII; o Gueto de Veneza é do Século XIV. Dependendo da circunstância histórica, eram mais ricos, ou mais pobres, mas todos eles traziam o sentido metafórico do isolamento, da exclusão, do preconceito.
A primeira vez que ouvi a expressão ‘Gueto de Gaza’ foi na minha casa. É uma expressão forte – e invertida. Nesse caso, a população judaica está fora do gueto, não dentro. Quem me chamou atenção para essa terrível inversão foi o meu companheiro, descendente de judeus poloneses. De nossa vida em comum, ostentamos, com orgulho, filhos brasileiros de descendência 50% árabe, 50% judaica, e sempre cultivamos a convicção de que seríamos – com outros tantos casais que fizeram a mesma ‘mistura’ – os precursores de um mundo moderno, de paz, laico, em que a religião fosse apenas uma decisão de foro íntimo que não agredisse vizinhos ou causasse guerras. Tenho acompanhado a angústia de meu companheiro nos últimos dias, no seu frenético procurar por imagens apertando botões da televisão a cabo, doendo por dentro pelas mortes de crianças palestinas, mulheres palestinas, centenas de anônimos palestinos, e tentando entender o que aconteceu com o inconsciente coletivo judaico daquele Israel do qual se sentiu parte quando, aos 18 anos, foi trabalhar num kibutz. É o Estado militarizado, explica: uma cultura entranhada da morte, uma dessensibilização para com a vida do outro, uma radicalização. Como deve ser difícil aos próprios israelenses que não concordam com a guerra entender isso: como a vida do outro pode ter se tornado acessória, como a humanidade pode ter se desumanizado. Lembro Primo Levi, nos seus pequenos e pesados livros em que tentou entender, de sua saída de um campo de concentração até a sua morte, a desumanização imposta pela guerra. ‘E isso é um homem?’, é o título de seu melhor livro, em que descreve um cru percurso de volta ao lar, depois da guerra, quando a sobrevivência tornou cada um daqueles que erravam pelas estradas animais. Isso não é um homem, diria, se aquela pesada literatura necessitasse de uma resposta.
Li no site da ‘Carta Maior’ artigo de Shulamit Aloni, que foi ministra do governo Itzhak Rabin, publicado originalmente no ‘Israel News’, que é um chute no estômago. Escreve ela, em ‘Sangue em nossas mãos’:
‘O Hamas exigiu a libertação de prisioneiros, e nós argumentamos que muitos deles têm sangue em suas mãos; nós somos muito mais capazes do que eles, mesmo que essa capacidade chegue a matar e leve a assassinatos. Nas primeiras 24 horas da operação matamos mais de 300 pessoas, inclusive duas meninas inocentes, para não mencionar as vítimas que matamos entre essa operação e outras anteriores. Por que nosso tão bem organizado exército, com sua excelente capacidade de inteligência, recusou a libertação de prisioneiros palestinos, quando poderíamos mandá-los de volta para casa e mais tarde assassiná-los no calor da batalha? Afinal de contas, já estamos sendo usados para assassinatos por ar, mar, em abrigos ou em bairros populosos. Assassinato – isto é, matar e assassinar. Além do mais, as pessoas que jogam nossas bombas não ficam manchadas com sangue. Nosso sistema é simples: não há necessidade de evidência para um julgamento. Uma vez que decidamos que alguém é alvo, jogamos uma bomba e ele se foi. Recentemente, o exército adquiriu permissão para matar civis que estejam próximos de alguém escolhido com alvo; isso foi publicado na imprensa há umas duas semanas, próximo à foto de uma sorridente comandante do exército‘.
Li também na ‘Carta Maior’ um artigo do secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina, Mustapha Barghouthi, em que a noção de gueto está lá também, cravado na pele:
‘Quem é mais antissemita, aqueles que viciaram Israel ano após ano durante sessenta anos, até desfigurá-lo ao ponto de fazê-lo o país mais perigoso do mundo para os judeus, ou aqueles que os advertem de que o Muro marca um gueto de dois lados? É antissemita reler Hannah Arendt hoje, em que nós, os palestinos, somos a escória da terra; é antissemita voltar a iluminar essas páginas sobre o poder e a violência?‘
A distância da guerra nos dá uma chance de não nos desumanizarmos. Mas a indiferença também desumaniza.’