Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ovo da rebelião


Circulam muitos boatos em São Paulo. De todos os tipos. Durante o dia, notícias que tinham verossimilhança foram espalhadas por um sistema de correio eletrônico e messenger que ainda não passou por uma “vacinação” em massa. A “vacinação” consistiria em convocar cada usuário da internet à sua responsabilidade social. Claro que isso não resolve – há quem se sinta ainda mais estimulado se souber que transgride alguma coisa -, mas limita o espraiamento da onda.


Em novembro de 2003, uma jovem ouviu do pai a história de que um grupo criminoso ia jogar uma bomba num shopping center de São Paulo no fim de semana que se aproximava. Seria uma “represália do PCC” a uma ofensiva, então em curso, de repressão policial. Tinha sido publicada uma reportagem segundo a qual bandidos ligados ao PCC haviam roubado 20 quilos de dinamite. O pai, que trabalhava na Conab, Companhia Nacional de Abastecimento, tinha ouvido a história de uma amiga economista do Incra, que por sua vez foi informada (desinformada) por pessoas que moravam em Presidente Bernardes, onde Fernandinho Beira-Mar estava preso, num presídio de segurança máxima. As evidências se encaixavam. A jovem quis avisar o maior número de amigos e colocou a história numa mensagem eletrônica que começou a se espalhar. Logo chegou aos jornais e outros veículos (inclusive sites de notícias), que ouviram a polícia e não propagaram o boato. A polícia abriu processo e indiciou o pai da jovem, que tinha menos de 21 anos de idade na época.


O mesmo padrão é relatado agora (ver texto de Maurício Cardoso no Consultor Jurídico).


Mas em círculos bem mais restritos corre outro “boato”. Melhor seria chamá-lo de informação: a polícia paulista sabia há 120 dias da articulação de uma onda de motins em presídios.


Não são 120 dias. São 80 dias A atual onda de rebeliões nos presídios paulistas, complementada por uma onda de atentados que não tem paralelo em praticamente nenhum lugar do mundo, nem no Iraque ocupado – ainda que se descontem ocorrências policiais isoladas contadas como ações coordenadas; notar que a maioria dos policiais mortos não estava em serviço, mas fazendo “bico” –, essa onda terrorista começou de fato a ser preparada no dia 23 de fevereiro, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do § 1º. do art. 2º. da Lei nº. 8.072/90, que proibia a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos.


Essa decisão implicou que cada caso fosse julgado pelo juiz de primeira instância. Esse deveria reconhecer o direito do preso à progressão. Mas, diante do temor de uma reação da opinião pública, tendeu a recusar o benefício e remeter a questão à instância superior.


Isso gerou uma pressão muito grande por parte de presos de alta periculosidade. Em São Paulo, onde as facções criminosas são hegemonizadas pelo PCC – diferentemente do Rio, onde quatro grupos se digladiam, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando, o Amigos dos Amigos e o Inimigos dos Inimigos, formado por ex-policiais julgados e condenados -, e onde a administração do Sistema Penitenciário não consegue impor disciplina nas unidades prisionais, os chefões ameaçaram: se não recebessem o benefício, iam promover uma onda de rebeliões.


A ameaça foi claramente detectada por órgãos de inteligência policial.


A administração penitenciária de São Paulo não consegue controlar os presídios porque, basicamente, o número de presos cresceu numa velocidade superior à possibilidade de se tomarem as medidas necessárias. Por exemplo, não instalar bloqueadores de celulares, mas um sistema de revista dos agentes carcerários, que são os principais responsáveis pela introdução de alimentos, maconha, cocaína, celulares, chips e armas nas prisões.


No Rio de Janeiro as rebeliões em presídios têm sido evitadas não só porque as facções não se entendem, mas porque se aplica um sistema de rodízio de presos. O conceito é: “Rato correndo não rói”. Calcula-se que 3 mil dos 15 mil presos do estado sejam trocados de prisão a cada mês. E os agentes carcerários, malgrado enorme chiadeira do sindicato da categoria, circulam a cada três meses. Também se conseguiu, no conjunto de penitenciárias de Bangu, instalar um sistema eletrônico de detecção de metais que é usado para vistoriar os agentes quando chegam ao serviço. Além disso, a carceragem é dividida com ex-PMs organizados em cooperativas que as autoridades consideram mais confiáveis.


Outra diferença é que no interior do estado as facções têm pouca influência. Também o número de presos federais custodiados é bem menor do que em São Paulo. E são feitas revistas sistemáticas nas celas, sob protestos dos presos, de 15 em 15 dias.


O resultado é que a administração penitenciária fluminense controla as prisões. Disciplina e controle não são incompatíveis com uma política correta de direitos humanos. Os prisioneiros, segundo os dirigentes do sistema prisional do Estado do Rio, são submetidos a regras claras e sabem que quem manda não são eles.


No Rio não há superpopulação em penitenciárias. Elas estão no limite, mas não o excedem. Há, sim, superlotação em prisões temporárias, onde estão 4 mil detentos. Em São Paulo, as penitenciárias estão superlotadas – à razão de 800 presos a mais por mês, seria necessário construir, equipar e guarnecer um presídio por quinzena – e o número de presos provisórios anda em torno de 40 mil, dez vezes mais.


Por que, então, Fernandinho Beira-Mar não pode ficar preso no Rio? Porque seu poder de corrupção junto à polícia aí é maior do que o controle que as autoridades possam exercer sobre ele. E o mesmo se diz da polícia de Minas Gerais. Há quem suponha que a temporada de um ano isolado em São Paulo promoveu o “descolamento” de Beira-Mar da rede que controlava. É cedo para ter certeza.


Em São Paulo, como no Rio e nos outros estados, as autoridades pagam alto preço pela inexistência de presídios federais.


São explicações para a onda de ações criminosas dos últimos dias em tantos pontos do território paulista. Só não explicam o grau de articulação, uma certa sofisticação das comunicações e a ousadia diante da polícia e outras instituições do Estado demonstrada pelo chamado crime organizado. Isso deixou muita gente do ramo de queixo caído. Mau sinal.