A expectativa de que a até agora bem-sucedida operação-abafa das revelações sobre as lambanças do senador José Sarney tiraria o gás da imprensa foi desmentida no domingo, 10, um dia depois de os jornais noticiarem o esperado engavetamento dos últimos pedidos de investigação contra ele.
Com uma apimentada diferença: desta vez, Sarney voltou ao noticiário não como sujeito, mas como objeto de uma história que, se verdadeira, deixará mal o governo que o tem protegido desde a primeira hora.
E desde já deixa no ar uma pergunta: o que será mais impróprio – ou, para usar o adjetivo da estação, indecoroso: um poderoso senador mexer os pauzinhos para empregar o namorado da neta, por ato secreto, afinal de contas, ou um poderoso ministro de Estado botar pressão sobre o Fisco para abreviar uma auditoria executada por ordem judicial?
Contando o caso como foi contado: há três semanas, a Folha de S.Paulo foi informada de que, em fins do ano passado, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, chamou para uma conversa a sós a então secretária da Receita, Lina Maria Vieira. No encontro, Dilma teria pedido a Lina para terminar logo uma devassa nas contas de três empresas do clã Sarney (Gráfica Escolar, TV Mirante e São Luís Factoring), do filho mais velho do senador, Fernando, que cuida dos negócios da família, e da mulher dele, Teresa Murad. Não faz muito, os dois foram indiciados pela Polícia Federal por uma penca de delitos.
Solicitada a corroborar a informação, Lina – demitida do cargo em julho último – a princípio se limitou a dizer que o encontro ocorreu, mas se declarou impedida de entrar em detalhes em obediência ao sigilo imposto pelo Código Tributário Nacional.
Assediada uma segunda vez com a pergunta “Como foi a conversa”, relatou que tinha sido muito rápida, com algumas amenidades – “e então [a ministra] me perguntou se eu podia agilizar a fiscalização do filho de Sarney”.
Lina entendeu que era para “encerrar” a fiscalização. E comentou que achava que “não queriam problema com Sarney”. Na época, ele parecia indeciso entre se candidatar ou não à presidência do Senado.
Sempre conforme a sua versão, ela respondeu que não sabia da auditoria e ia verificar. “Não fiz comentário, nem se ia atender, se não ia atender. Fui embora e não dei retorno.”
Naturalmente, a Folha foi atrás de Dilma – quatro vezes, segundo a matéria assinada pelos repórteres Leonardo Souza e Andreza Matais. Obteve duas respostas: não houve a reunião, nem a ministra faria o que a ex-secretária da Receita lhe atribuiu.
O duplo desmentido deixou o jornal diante do dilema clássico: qual das duas versões bancar? Porque só aparentemente a questão se resume em noticiar que A diz uma coisa sobre B, e B diz que a coisa não existe.
Dependendo da forma como constrói a história contestada, fica claro o lado para o qual ela se inclina. Nada de errado nisso, desde que a contestação não seja sepultada nos cafundós do texto, desde que o periódico que o publicou tenha o que os advogados chamam “elementos de convicção” a respeito da veracidade da informação e desde que esses elementos sejam compartilhados com o leitor.
No caso do encontro entre Dilma e Lina que aconteceu/não aconteceu, a Folha aparentemente se baseou em três dados para presumir que aconteceu.
Primeiro, no fato de que já tinha alertada sobre o encontro e o que nele teria sido tratado. Segundo, que a ex-secretária se lembrava como a ministra estava vestida: “Com um xale, por cima de uma blusa, de óculos. Não estava, assim, de terninho.”
Isso, evidentemente, não prova que a reunião tenha acontecido. Ou, se aconteceu, não prova o que Lina disse que Dilma lhe disse.
A Folha pesquisou “todos os dias da agenda oficial” da ministra. Não encontrou nenhuma referência a Lina – o que não quer dizer nada porque nem todas as audiências de um ministro, para não falar nas do presidente, ficam registradas.
As agendas de Lina, disse ela, estão empacotadas junto com a papelada que vai levar de volta para casa, no Rio Grande do Norte.
O terceiro dado, que dá lastro à ideia de que, se a história não é verdadeira, verossímil pelo menos é, tem a ver com o tal do contexto.
Dilma teria procurado Lina três meses depois que um juiz federal maranhense, Ney Bello Filho, deu um aperto na Receita para intensificar e ampliar – sob pena de prisão dos seus dirigentes – a devassa fiscal que havia exigido um ano antes nas empresas familiares geridas por Fernando Sarney, motivada pelas investigações da Operação Boi Barrica, da Polícia Federal.
Quando recebeu a primeira ordem, a Receita era chefiada por Jorge Rachid. Lina o substituiu em agosto do ano passado. Estranho, por sinal, que ela tivesse dito à ministra – ou que tivesse dito à Folha que dissera a ela – que “não sabia da auditoria”. Fingiu-se de sonsa? Pode ser. Mas o jornal devia ter insistido no detalhe.
Mesmo porque, como se lê na matéria, “em outubro, a Receita começou a montar um grupo especial de auditores de fora do Maranhão. Conforme a Folha revelou na semana passada, 24 pessoas físicas e jurídicas ligadas direta e indiretamente a Sarney estão sob investigação pelo fisco.”
Outro ponto lembrado na reportagem é que um dos fatores da demissão de Lina teria sido a sua recusa de atender pedidos de políticos. Fonte: a demitida. Numa entrevista a O Estado de S.Paulo, uma semana depois da queda, ela fez praça de sua posição de “não aceitar ingerência política na administração tributária”.
Curiosamente, nenhum dos políticos governistas ouvidos pelos jornais para “repercutir” a matéria da Folha nas edições da segunda-feira ecoou a versão da assessoria da ministra, segundo a qual o encontro com Lina inexistiu. O que eles fizeram foi argumentar que a ex-secretária distorceu o sentido do pedido para “agilizar” a investigação da Receita.
A ministra não teria tido a intenção de abafar a auditoria, mas de acelerá-la. Precavida, a Folha apontara que, de acordo com auditores da Receita, “uma fiscalização como essa pode levar anos”. Daí a sua conclusão lógica de que “encerrá-la abruptamente seria o mesmo que ‘aliviar’ para os alvos da investigação.
Mas o pior não é nem isso. Os políticos que acham que a ministra não fez nada de errado se esqueceram – assim como os seus entrevistadores – de que não faz parte das atribuições legítimas da Casa Civil pedir qualquer coisa em relação a uma investigação da Receita, ainda mais quando iniciada por decisão judicial. Se o Brasil fosse um país sério e se em Brasília as autoridades conhecessem os seus limites, já seria um abuso mesmo se o ministro da Fazenda, a quem o Fisco federal responde, se intrometesse na questão.
Para surpresa de ninguém, deu nos diários que a base governista no Congresso fará o que sabe para impedir que a oposição convoque a ministra Dilma a depôr sobre o caso, muito menos a uma acareação com Lina Maria.
Ainda bem que a imprensa não se pauta pelo destino das denúncias que ela levanta.
O efeito-Marina
Não passa dia sem que a possível candidatura presidencial da senadora Marina Silva pelo Partido Verde frequente as páginas políticas. Nesta segunda-feira, o Valor puxou para título de uma entrevista de página inteira com o deputado Ciro Gomes a sua previsão de que “se aceitar a convocação do PV, ela implode a candidatura da Dilma”.
Ciro não é propriamente um analista desinteressado do jogo da sucessão. Ele quer disputar a partida pela terceira vez. Se não der, aceitará “cumprir a tarefa” de concorrer ao governo de São Paulo. Nada do que ele diga pode ser dissociado de suas ambições. Vale para o prognóstico sobre o efeito-Marina. Mas não há jornalista que não salive diante do verbo “implodir” – e ele decerto sabia disso.