O documentário Vlado – 30 anos depois, de João Batista de Andrade, dá margem a um mal-entendido sobre o que deve ter sido o período mais fecundo da carreira do jornalista morto em 25 de outubro de 1975, no DOI-Codi de São Paulo.
É o período em que ele foi editor cultural da revista quinzenal Visão, depois de sua primeira passagem pela TV Cultura, em 1972.
O mal-entendido não é um detalhe, nem uma nota de rodapé numa história de vida e morte. Quanto mais não seja, torna aparentemente inexplicável a decisão de Vlado de deixar a publicação em que podia fazer – e fazia – jornalismo combativo e competente, para voltar à TV Cultura, onde ele e a sua equipe viriam a ser alvos da caça às bruxas que deu na tragédia daquele maldito sábado.
O problema é que o filme passa a idéia de que a revista Visão era uma – quando foram duas.
Na primeira, que pertencia ao publicitário Said Farhat e que foi dirigida sucessivamente por Antonio Pimenta Neves (quem contratou Vlado) e Luiz Garcia, havia não só liberdade, mas estímulo, absolutamente excepcionais no regime militar, para o exercício do jornalismo crítico, menos em relação ao modelo econômico da ditadura. O fato de a revista nunca ter estado sob censura prévia, ao contrário da Veja, Estado e Jornal do Brasil, ajudou muito.
Na segunda Visão, comprada de Farhat pelo empreiteiro Henri Maksoud para promover os seus negócios e as suas ambições pessoais, só havia estímulo para pregar a desestatização da economia, a obsessão do thatcherista dono da Hidroservice (e, depois, do hotel que levaria o seu nome).
Farhat, que viria a ser ministro de Comunicacão Social, na fase pré-Riocentro do governo Figueiredo, e presidente da Embratur, fechava com a política delfiniana e não abria. Já em relação a todo o resto era provavelmente o patrão mais aberto da mídia brasileira na época.
Lido, viajado e sofisticado, ele se definia como um liberal – que pronunciava, para que o entendessem, “líberal”, como os americanos chamam os defensores de idéias progressistas em matéria de direitos civis e liberdades individuais. Não era pouco, no Brasil dos generais.
Publisher acidental
No filme de João Batista, o jornalista Fernando Moraes diz que a Visão reunia um verdadeiro “dream team” – e citou principalmente aqueles que foram para a revista depois que o seu controle passou do “líberal” Farhat para o autoritário, no plano pessoal e político, Maksoud. Fernando mencionou o nome deste e omitiu o daquele – criando uma confusão que o documentário poderia ter desfeito com outros depoimentos.
Alguns dos citados, como Ricardo A. Setti e Rolf Kuntz, além do próprio Fernando, eram já então, de fato, jornalistas pedra 90. Por isso mesmo, acabaram se retirando da Visão tacanha e míope do publisher acidental Henri Maksoud, menos de um ano depois de irem para lá cheios de esperança.
Exatamente como haviam feito no ano anterior de 1974 os principais astros do “dream team” de Farhat – o referido diretor de redação Luiz Garcia, o diretor da sucursal carioca Zuenir Ventura e, depois, o diretor da sucursal de Brasília D’Alembert Jaccoud.
A primeira conversa de Garcia e Zuenir com Maksoud, em que eles queriam saber a sua posição sobre o Estado de direito democrático e ele falava do gigantismo do Estado brasileiro, é um clássico do gênero “diálogo de surdos”.
Quando chegou a vez dele de esvaziar as gavetas, em 1975, um desiludido Rolf Kuntz teve a elegância de comentar comigo: ““Muito obrigado por não falar “eu não disse?””.
Entre antigos e novos editores da Visão nenhum há de ter sentido tão profundamente como Vlado o tremendo retrocesso sofrido pela revista em que pudera publicar (com Zuenir Ventura) a reportagem de capa “O vazio cultural no Brasil” – um marco na história da produção jornalística na ditadura.
Não apenas porque a vaga noção de jornalismo cultural do doutor Maksoud não tinha nada a ver com a que prevaleceu no tempo de Farhat, mas também por causa das diferenças entre Vlado e o novo diretor de redação Evaldo Dantas Ferreira.
As matérias que ele queria ver na seção cultural da revista – sobre um obscuro poeta italiano, por exemplo – deixavam Vlado enfurecido. Num almoço, a tal ponto falou mal do chefe que Ricardo A. Setti, um dos membros da equipe que Evaldo trouxera consigo, interrompeu para dizer que, se o Vlado não parasse com aquilo, ele, Ricardo, teria de se retirar, por uma questão de lealdade com o amigo.
Isso pode parecer futrica de redação, mas não tem a intenção de ser. É uma ponta da crônica do desmoronamento da Visão, que representou um golpe devastador para o que, naqueles dias sombrios, pudesse haver no Brasil de jornalismo com luz própria (embora para um leitorado de elite, apenas).
Tampouco é o caso de fazer história contrafactual. Mas, para quem conhece por experiência própria essa passagem crucial que o documentário de João Batista poderia ter deixado mais clara, impossível não perguntar que rumos teria tomado a vida de Vlado se a Visão onde ele foi trabalhar e se sentia razoavelmente confortável (para os seus exigentes padrões profissionais) não tivesse desaparecido ao mudar de mãos.
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