Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que Lula disse à The Economist (e o leitor não leu) sobre política externa do Brasil

O que os jornais e sites brasileiros trouxeram da entrevista do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, à revista The Economist é quase nada perto do que foi publicado pela revista e seu site. O único jornal a publicar a íntegra da principal reportagem foi o Valor Econômico, que detém os direitos de reprodução da revista no Brasil, mas, por suas próprias características, tem alcance limitado por seu próprio perfil e circulação. Além da reportagem, que ocupou uma página inteira da edição de sexta-feira. Além da reportagem, no entanto, a The Economist trouxe ainda um editorial e – mais importante do que todo o material restante – a transcrição editada da entrevista.

A íntegra da entrevista ocupa mais de 40 páginas tamanho A-4. Sua leitura mostra que a revista que mais influencia líderes políticos internacionais e presidentes empresas globais trata Lula com mais civilidade do que a imprensa nacional. A deferência não se deve apenas à figura mítica do metalúrgico que chegou ao poder – aqui, motivo de preconceito –, mas à importância conquistada pelo Brasil em questões de política internacional – aqui, um fiasco total, segundo a opinião predominante dos jornais e estrelados colunistas.

A reprodução dos trechos abaixo procurou ressaltar temas que não foram destacados pela imprensa nacional. Antes de cada bloco, estão relacionados os temas gerais tratados a seguir.

Comércio Global – Subsídios agrícolas dos países ricos – Rodada de Doha

The Economist: Na semana que vem, o senhor vai se encontrar com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair. O que o senhor dirá a ele acerca das negociações sobre o comércio global?
Presidente: Temos uma agenda razoavelmente cheia para discutir com Tony Blair. É lógico que a OMC [Organização Mundial do Comércio] e a Rodada de Doha [negociação sobre subsídios agrícolas] são extremamente importantes. Como eu já disse para Tony Blair por telefone e, depois na África do Sul, é necessária uma ação nessas negociações, na qual nem os países ricos nem os países em desenvolvimento sejam os grandes vencedores, mas sim os países mais pobres da América Latina, África e Ásia. O que nós decidirmos na Rodada de Doha irá afetar toda a humanidade durante os próximos 20 ou 30 anos. Minha conversa com Tony Blair, que foi o primeiro chefe de estado com quem conversei é que não podemos simplesmente deixar essas negociações apenas sob responsabilidade dos representantes dos países. Se for preciso, teremos de reunir os chefes de estado para decidir as questões importantes. Minha preocupação reside sobretudo nos assuntos relacionados à agricultura nos países pobres. Eu sei que a agricultura não é apenas um tema econômico na Europa, mas sim um tema político. Na França, apenas 1% da força de trabalho está no campo; na Inglaterra, 2,8%; na União Européia 4,8%. Mas, no Brasil, ela representa 25%; nos países asiáticos, 50%; e 70% em Camarões. Portanto, os países que têm participação importante do campo precisam de algum tipo de incentivo, alguma sinalização de que eles podem tornar o comércio agrícola um pouco mais favorável para os países mais pobres. A Europa precisa evoluir em sua posição, tornando-a mais humanitária. Não se trata apenas de pensar nas próximas eleições, mas pensar nos próximos 30 anos. O que nós queremos para o mundo? Eu acredito que a paz, a luta contra o terrorismo e a redução do fundamentalismo estão ligadas ao melhoramento da qualidade de vida dos pobres. Este é um assunto que estou ansioso para conversar com o primeiro-ministro Blair. Outro ponto Aldo da agenda, que poderá ser uma excelente política para as economias frágeis, é a energia renovável, especialmente o etanol e os biocombustíveis. A Alemanha dedica-se fortemente a esses pontos e eu acredito que a Grã-Bretanha também possa ter um importante papel nessa discussão.

The Economist: De que maneira?
Presidente: Nós precisamos utilizar o biodiesel como base nas parcerias com os países pobres e viabilizar a produção de biodiesel nesses países. Trata-se de um importante gerador de empregos. No Brasil, temos uma boa experiência com o trabalho de cinco empresas que já estão produzindo biodiesel. Nós criamos o Selo Social, sistema pelo qual uma companhia pague menos impostos quando compra óleo vegetal de pequenos produtores. Isso viabilizou a criação de centenas de empregos para pequenos produtores de soja, de sementes de feijão, girassol e algodão. Quem sabe se, dentro de algumas décadas, ao invés de falarmos sobre ‘prospecção de petróleo’, nós estaremos plantando petróleo. Ao invés de perfuramos um poço com 2 mil metros de profundidade, estaremos cavando um pequeno buraco de 30 centímetros para plantar uma semente e, depois, quando ela atingir 1,80m, proceder a colheita e transformá-la em biodiesel. Isso pode representar menos poluição, criação de empregos e energia renovável.

The Economist:
Para obter esse acordo agrícola o Brasil está preparado para reduzir as tarifas de importação de produtos industrializados?
Presidente: Substancialmente, não, mas sim proporcionalmente ao peso e valor da nossa economia. O Brasil está preparado para fazer a sua parte, sendo mais flexível tanto na indústria quanto nos serviços, mas proporcionalmente ao tamanho da nossa economia. Nossas conversas não devem levar em conta apenas o contexto imediato, mas sim dar a elas um contexto mais humanitário. Nós estamos preparando acordos que podem influenciar a humanidade pelos próximos 30 anos. Dessa forma, essas concessões terão de ser feitas, para depois os países emergentes poderem apresentar as suas, seguidos depois pelos países mais pobres. Seguindo esse caminho, nós estaremos fazendo algo mais eqüitativo na distribuição dos resultados sobre o que queremos produzir para as próximas décadas.

The Economist: Seria, então, uma concessão mais em proporção ao tamanho da economia do que na mesma proporção das concessões dos países ricos.
Presidente: Veja, as concessões dos países ricos também deverão ter como base suas necessidades econômicas e políticas. Em outras palavras, as concessões precisarão ser proporcionais ao peso de cada país no comércio. Este acordo tem feições mais econômicas para os países pobres e maior conotação política para os países em desenvolvimento e de economias fortes. Eu digo isso com sinceridade porque o Brasil não tem medo de competir com os países ricos na agricultura. Nós temos tecnologia, terra e todas as condições ideais para competir com qualquer país. Então, quando brigamos na OMC para colocar nosso açúcar e nosso algodão no mercado europeu, não estamos defendendo apenas os nossos interesses, mas também porque isso pode ajudar muitos outros países, como o Benin, por exemplo, que produz 450 mil toneladas de algodão, que sustenta a sua economia. Eu tenho ótimas expectativas para minha viagem à Grã-Bretanha, baseado nas nossas boas relações com Tony Blair. Eu acredito que a Grã-Bretanha pode desempenhar um papel importante nessa questão dentro da OMC [Organização Mundial do Comércio]. Vejo boa-vontade em Tony Blair. Acabo de ler um documento assinado por Pascal Lamy [diretor-geral da OMC], dizendo que os presidentes não devem interferir nas negociações. Eu não me preocupei com esse documento porque Lamy está fazendo o seu trabalho. NO que me diz respeito é tentar chegar a um acordo com o que Tony Blair pensa, com o que Bush pensa, com quem quer que seja que tenha poder de decisão.

Conselho de Segurança da ONU – Reforma da ONU – Estadistas presos a questões dos séculos 18 e 19

The Economist: O Brasil está lutando por um acento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Como isso pode ajudar o Brasil e o mundo?
Presidente: Vamos tratar essa questão sob outro ponto de vista. O Brasil está lutando por uma reforma profunda na ONU. A ONU está com quase 60 anos e os conflitos que motivaram a sua criação não existem mais, ou, pelo menos, não tem a mesma intensidade. A ONU precisa levar em conta a nova geopolítica. O mundo bipolar não existe mais, assim como a Guerra Fria; hoje, a democracia está fortemente consolidada em muito mais países. Então, o que nós estamos querendo? Nós queremos que a ONU, e não apenas o Conselho de Segurança, seja melhor representado de acordo com a política do mundo atual. O Conselho de Segurança precisa mudar. Nós precisamos dar à ONU mecanismos que lhe dêem credibilidade para tomar decisões. Após a reforma da ONU, o Brasil, obviamente, por ser o maior país latino-americano, está se preparando para ter um lugar. Outros países também se apresentarão. Nós acreditamos que os continentes precisam ser melhor representados. A África tem 59 países e, portanto, ela deve ter pelo menos dois representantes no Conselho de Segurança. Aqui na América Latina temos o Brasil, temos o México, temos a Argentina. Todos esses países poderão se apresentar. Eu tive a oportunidade de conversar com Hu Jintao [presidente da China] e de perguntar a ele porque o Japão, uma das principais economias do mundo, não pode fazer parte do Conselho de Segurança? Nós não podemos permitir que problemas do século passado influenciem decisões que nos afetarão nos próximos séculos. Volta e meia, eu cruzo com um governante preocupado com algo que aconteceu no século 18 ou no século 19. Pelo amor de Deus! Eu acho que nós precisamos ter maturidade e sensibilidade para permitir que esses acontecimentos entrem para a história e encontrar caminhos para fazer novos acordos para o futuro. Afinal de contas, nós não governamos para os que vieram antes, mas sim para aqueles que ainda virão. Esta pode ser a base para a reforma da ONU. Uma ONU preparada para o futuro será uma ONU com mais poder e mais democrática, e com mais determinação e agilidade para resolver conflitos. É justamente nesse ponto que precisamos da força dos países mais importantes. Freqüentemente, a ONU toma decisões mas se essa decisão não tiver o apoio dos Estados Unidos ou da China muitas vezes elas simplesmente não são implementadas. Portanto, o que nós queremos é a decisão seja tomada por todos depois das discussões necessárias. Mas, uma vez que essa decisão seja tomada, ela precisa ser aplicada. Isso vale para Israel, para a Palestina, para a China, para o Brasil, para a Bolívia.