Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A estratégia editorial do medo

A estratégia da imprensa de usar a violência, catástrofes, dramas, crimes e acidentes para chamar a atenção do público já passou do limite da exaustão. É irritante a insistência dos telejornais das redes de TV em transformar o noticiário quotidiano num desfile de tragédias, atentados, assassinatos, tiroteios e desastres naturais. Se o noticiário da TV fosse um retrato fiel do mundo em que vivemos, todos nós acabaríamos paranoicos.

Se a intenção é sacudir as audiências para despertá-las do torpor da rotina diária, o efeito está sendo justo o oposto. As pessoas se acostumaram de tal forma com doses maciças de violência, arbítrio, terror e intimidação que já não se importam mais com poucas vítimas. A imprensa não admite, mas uma estratégia baseada na avalancha contínua de narrativas violentas obviamente acaba por assustar, intimidar e consequentemente tornar as pessoas mais dóceis e submissas

A insistência na divulgação de possíveis novos atos terroristas na Europa tende obviamente a assustar os europeus na sequência do impacto gerado pelo caso Charlie Hebdo, que foi tratado pela imprensa de todo mundo como uma espécie de “11 de Setembro” do Velho Mundo, numa alusão ao atentado às Torres Gêmeas, em Nova York. O clima de medo tende a imobilizar as pessoas e permite que as autoridades policiais tenham liberdade total para violar privacidades e deter suspeitos sem formalidades legais.

A estratégia da exploração da violência no noticiário, especialmente o da televisão, é indissociável da política do medo porque uma é causa e consequência da outra. Mas o uso intensivo do noticiário sobre violência no dia a dia dos telejornais acaba gerando uma visão distorcida da realidade entre os telespectadores e aguça o instinto de autodefesa, que por sua vez gera um fenômeno ainda mais brutal. Quando as pessoas internalizam a percepção de viver num ambiente urbano violento, elas automatizam a reação de atacar antes de ser atacado, ao menor indício de uma ameaça.

É isso que as redações dos telejornais precisam tomar em conta na hora de elaborar as pautas porque, além de correrem o risco de perder telespectadores saturados com a rotina de notícias sobre tragédias, elas podem estar alimentando a própria violência social ao estimular o clima de medo.

O recurso ao noticiário chamado “policial” está também ligado à relação cada vez mais promíscua entre repórteres e policiais. A página policial dos jornais e o noticiário da TV acabaram se transformando em estratégias de marketing da polícia, que facilita o acesso da imprensa aos locais onde ocorreram delitos, prepara a cena do crime e fornece porta-vozes que produzem declarações que seguem o media trainning, mas que não são contestadas pelo repórter. 

Claro que há notícias envolvendo delitos praticados por policiais – como abuso de autoridade, ocultação de vitimas, assassinato e tortura. Em quase todas elas é incluída a declaração de algum superior hierárquico informando que os acusados serão julgados e, se culpados, exemplarmente punidos. Mas a imprensa dificilmente faz um seguimento do caso para saber se foram considerados culpados e se foram sancionados com a severidade prometida.

O rosário de desgraças transmitidas diariamente não se limita ao crime e à corrupção. Se estende também ao clima – com o chamado terrorismo meteorológico envolvendo a seca em várias regiões do país, inundações, a monótona sequência de mortes no trânsito e nas estradas. O noticiário sobre as férias de verão se destaca mais pelos horrores dos afogamentos, congestionamentos, calor sufocante, arrastões etc. do que pela busca de divertimento e descanso.

A imprensa ficou tão obcecada com o lado espetacular das tragédias, crimes e desastres naturais que perdeu de vista a preocupação educativa, como fornecer informações para que as pessoas superem as dificuldades. O espetacular tende a gerar audiência e publicidade, já a educação é bem menos comercial e mais social. É outra consequência da abordagem da notícia como uma mercadoria comercializável em vez de um fator de produção de conhecimento, ou seja, capacidade de tomar decisões para enfrentar situações adversas.

Diante de tudo isso, e inevitável a pergunta: há alguma alternativa? Evidente que há, mas as redações rotinizaram de tal forma o recurso ao noticiário sobre delitos e tragédias naturais que simplesmente deixaram de buscar alternativas para esse tipo de abordagem jornalística. Pior do que isso, ironizam como jornalismo róseo as tentativas de sair da armadilha do crime, tragédias e corrupção. Mas há luz no fim do túnel, como mostra um grupo de jornalistas norte-americanos responsáveis pelo projeto Solutions Journalism Network (Rede de Jornalismo de Soluções).

Pode parecer algo meio piegas ou filantrópico, mas está longe disso, como mostram os depoimentos de empresas que aceitaram colocar em prática as propostas da Rede, explicitadas num manual que pode ser baixado gratuitamente na internet. São sugestões simples, mas que partem de um giro de 180 graus na perspectiva das redações. Em vez de olhar apenas por um lado dos problemas, os profissionais vinculados à Rede propõem que repórteres e editores passem a olhar também do lado contrário.

Num caso como seca, enchentes, terremotos, calor ou frio recordes, tornados etc., não basta noticiar o que está acontecendo. Muito mais importante é fornecer informações para que as pessoas possam enfrentar as adversidades. Os telejornais podem alegar que já fazem isso, só que o noticiário educativo acaba relegado à condição de anexo ou quadro na cobertura principal, toda ela focado na ênfase do trágico, dramático e violento.