Chamado a comentar a idéia que estaria circulando entre oficiais de pijama, de requerer à Justiça que declare terem sido ‘terroristas’ militantes de organizações de resistência à ditadura militar de 1964-1985, o deputado federal Fernando Gabeira – citado como um deles por sua participação no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em 1969 – aparece nos jornais de hoje dizendo que tem mais a fazer do que ‘olhar para trás’.
Ele diz que do passado só lhe interessa ‘promover a divulgação completa dos documentos’ do período em que perto de 400 pessoas foram mortas e muitíssimas mais foram torturadas pelas matilhas do regime.
Mas isso é, sim, olhar para trás. Por mais que se diga que não se devem reabrir cicatrizes de um tempo que a maioria dos brasileiros só conhece de ouvir falar – pela mídia, ou por livros e filmes –, e olhe lá, o segredo que protege as evidências documentais ainda não destruídas dos horrores daqueles anos de chumbo é uma afronta a um dos direitos fundamentais das sociedades democráticas: o de conhecer a história de seus países.
Mas, no Brasil que ainda mantém trancados os papéis da Guerra do Paraguai (1865-1870), que devem incluir provas das atrocidades cometidas pela tropa brasileira contra a população civil paraguaia, a luta pelo conhecimento da verdade recente tem escassa ou nenhuma chance de vingar até onde a vista alcança.
Na mídia, por exemplo, o assunto só interessa a uns poucos jornalistas louvavelmente teimosos e justificadamente curiosos, entre outras coisas, pelos nexos entre os altos escalões do poder militar e o que se passava nos porões do regime. Dos grandes jornais, apenas a Folha, salvo engano, de vez em quando invoca em editorial o imperativo de resgatar os fatos sequestrados pelos que têm motivos para temer que saiam à luz do dia.
Não se pode, porém, impedir as pessoas de olhar para trás. É o que fez a família de Criméia de Almeida, ex-militante do PC do B. Ela pede, com base em provas, que a Justiça declare torturador o já reformado coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele comandou o infame DOI-Codi de São Paulo, onde morreu sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, cujo ‘suicídio’ desencadeou a primeira grande manifestação pública de repulsa ao regime ditatorial.
Boa parcela do oficialato mais idoso de pijama, incluíndo dois ex-ministros do Exército já no país redemocratizado, é solidária com Ustra. Cerca de 500 deles se reuniram ontem no Clube Militar, no Rio, para um almoço de desagravo ao seu ‘amigo’, como a ele se referiu, falando à Folha, um desses ex-ministros, general Zenildo Zoroastro de Lucena, no início dos anos 1990.
O próprio Ustra foi quem falou aos jornalistas da idéia de imitar de ponta-cabeça a iniciativa da família do casal que teria sido torturado no DOI-Codi na presença dos seus filhos pequenos, o que Ustra obviamente nega.
Ao justificar o troco, perguntou: ‘Eles não querem que eu seja chamado de torturador?’
Além de Gabeira, Ustra inclui na categoria dos ‘terroristas’ o secretário de Governo de São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira. Ele foi da Aliança Libertadora Nacional (ALN).
Se a idéia de Ustra & Cia é criar um clima político adverso a ações como a que corre na Justiça paulista, o resultado pode ser um tiro no pé.
Isso não impedirá que pessoas comuns tenham motivos plenamente justificados para revolver o passado. E quanto mais se o fizer, mais fatos de interesse público acabarão por emergir. A Lei da Anistia não pode ser um Muro de Berlim para impedir que a verdade fuja do calabouço onde foi trancada.
‘Ustra defendeu a Constituição’, diz o delegado David dos Santos Araújo, que trabalhou sob suas ordens no DOI-Codi. ‘Ele era a legalidade. Os demais é que eram a ilegalidade.’
Para o eventual leitor que tenha acabado de desembarcar de Marte: entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, o governo legal e legítimo do presidente João Goulart foi derrubado por uma intervenção militar que criou a sua própria ‘legalidade’ e ‘legitimidade’, cujo ponto culminante foi o tenebroso Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 – o golpe dentro do golpe.
Pode-se condenar, ou não, no plano dos valores políticos ou no da adequação dos meios aos fins, atos cometidos pelos movimentos de oposição à tirania que recorreram à luta armada. Mas a resistência à opressão é um direito consagrado desde a criação dos Estados Unidos da América.
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