Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ombudsman da Folha vê com pessimismo futuro de jornais

O ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, exercerá pela última vez sua função no próximo domingo, 4 de abril. Ele terá cumprido três mandatos anuais no cargo. Ontem Beraba participou do programa de televisão do Observatório da Imprensa (ver ‘Como a mídia cobre a mídia‘). À tarde, em entrevista para o site e para o programa de rádio que foi ao ar nesta manhã, fez um balanço de seu trabalho.


Ele vê a imprensa como uma cadeia, uma rede. “Não basta só a Folha ter credibilidade, o Estado, o Globo, a TV Globo. Quando se começa a ter problemas em um, dois, de uma certa maneira atinge-se toda a cadeia”. Por isso, algumas de suas colunas não trataram prioritariamente da Folha, mas do estado da mídia.


Desde abril de 2004 houve duas eleições presidenciais e o escândalo do “mensalão”. Beraba não endossa a idéia de uma “conspiração da mídia” contra o governo Lula, mas avalia que em alguns momento ela errou. Faltou equilíbrio, faltou pluralismo. Faltou cobertura do estado e da cidade de São Paulo, que teria mostrado falhas de governos tucanos. Faltou apuração jornalística própria.


Na opinião do ombudsman, os jornais estão erráticos há bastante tempo. Ele reproduz um diálogo imaginário: “Temos que fazer um jornal mais ilustrado, mais colorido, com notinhas menores, matérias menores, os leitores não têm tempo, temos que mudar o cardápio”. Beraba diz que falta foco na questão do conteúdo.


O ombudsman é pessimista em relação ao futuro imediato dos jornais. “As redações ficaram bastante debilitadas com essa crise toda dos últimos anos”, diz. “Não estão paralisadas, não estão estagnadas, mas a mudança é pontual, é reposição de peça”.


Ele acha que o ritmo de melhoria qualitativa já foi bem mais intenso. E prevê que, ao invés de investirem na questão da qualidade editorial do conteúdo dos jornais, as empresas vão tentar enfrentar a crise criando novos produtos. Não será o melhor caminho, na sua opinião.


O sucessor de Beraba na função de ombudsman da Folha de S. Paulo será o repórter da sucursal do Rio Mário Magalhães.


A seguir, a entrevista.


A imprensa é uma cadeia, uma rede. Problemas de uns afetam todos


Quando o senhor começou, quais foram os objetivos que se fixou, baseado na experiência dos antecessores? O que era relevante naquele momento?


Marcelo Beraba – O mandato de ombudsman na Folha é de três anos. Faz-se um contrato de um ano que pode ser renovado por mais um e por mais um, de comum acordo. Nesse período se tem estabilidade, e acabado o mandato se tem estabilidade por seis meses. Comecei em 5 de abril de 2004 e termino em 4 de abril de 2007.


O ombudsman na Folha de S. Paulo tem três funções distintas, mas complementares. Digo que é o ombudsman na Folha porque nem todos os ombudsmans de mídia têm as mesmas funções. Na Folha se tem uma primeira função, a de fazer a crítica interna. Todas as manhãs eu leio o jornal, tanto a edição São Paulo como a edição nacional, e faço uma crítica. Leio os outros jornais, também, para ter uma base. Essa crítica é escrita e enviada por e-mail para todos os jornalistas da Folha e fica à disposição do leitor no site do ombudsman.


Quanto tempo leva essa tarefa de ler o jornal?


M.B. – Eu perco a manhã nisso. Mas eu acabo ficando muito disperso, tocando outras coisas. Em tese, é uma manhã. Normalmente ela está pronta às duas horas da tarde.


Começando às nove horas?


M.B. – Começo bem antes, pego uma parte do jornal em casa, mas paro, vou tocar alguma coisa de leitor, da coluna de domingo. Mas essa é minha principal atividade na parte da manhã. Na parte da tarde eu faço o atendimento do leitor. Recebo todas as mensagens. Minha terceira função é a coluna dominical, em que eu trato da mídia em geral. Embora a própria definição da função preveja isso, eu nesses três anos tentei ter como foco principal a própria Folha de S. Paulo.


Nisso o senhor foi diferente dos anteriores?


M.B. – Todos sempre tiveram mais foco na própria Folha. Eu, em alguns momentos, tratei da crise da imprensa, da crise de negócio, de credibilidade da imprensa, de alguns outros meios, principalmente quando achei que era evidente a questão da quebra de confiança do leitor. Isso é uma cadeia. Eu vejo a imprensa como uma cadeia, no sentido de uma rede. Não basta só a Folha ter credibilidade, o Estado, o Globo, a TV Globo. Quando se começa a ter problemas em um, dois, de uma certa maneira atinge-se toda a cadeia. Em alguns momentos eu achei que deveria tratar de outros meios que não a Folha de S. Paulo.


Duas eleições e o “mensalão” no meio


Talvez seja interessante recapitular alguns dos episódios que fizeram o senhor se voltar para essa cadeia. Quando aconteceram situações críticas entre 2004 e hoje?


M.B. – Esse período está marcado por alguns acontecimentos determinantes para se entender o trabalho de ombudsman. Foram duas eleições. A de 2004, municipal, e a de 2006, presidencial e estadual. A eleição provoca um acirramento natural, partidário, ainda mais em se tratando da conjuntura atual do Brasil, em que se tem os dois principais partidos que disputam o poder com suas principais bases em São Paulo, e o fato de a Folha ser em São Paulo. E ter uma herança das diretas. Tudo isso faz com que haja uma relação de amor e ódio com a Folha. De entenderem que a Folha deveria defender mais os interesses de um ou outro partido que se identificava com a Folha quando defendia as diretas já, e ao mesmo tempo considerar que a Folha está sendo parcial em relação a algum dos partidos. Esse acirramento sempre existe em eleição e é muito forte em São Paulo por essa circunstância, diferente um pouco da circunstância do Rio de Janeiro, onde não há partidos tão fortes fincados na cidade.


Isso já cria um ambiente de muito conflito. E ficou mais acirrado ainda pela cobertura crítica que a Folha imprimiu nessas duas eleições em relação ao governo federal e ao PT, o que foi compreendido como parte do leitorado como um posicionamento pró-tucano, pró-PSDB, anti-PT, anti-Lula. Em vários momentos eu considerei que o jornal não estava tendo o equilíbrio que deveria ter e apontei isso. Mas apontei também que esse problema não era restrito à Folha. Acho que vários outros jornais tiveram problema parecido.


Mídia no Brasil tem papel ampliado


É uma discussão muito difícil porque cabe aos jornais, e felizmente, ou infelizmente, não sei, num país como o nosso, em que ainda se tem um Ministério Público em crescimento, em processo de fortalecimento, uma Justiça lenta, demorada, em que há uma percepção fortíssima de impunidade, não só há uma expectativa em relação a uma ação de denúncia da imprensa, de acompanhamento, de investigação jornalística, como também há uma idéia de que ela em alguns momentos vai além do que deveria ir. Há uma cobrança, e a imprensa tem um papel importante na investigação jornalística dos governos, dos recursos públicos, em função das deficiências que eu enumerei, diferentemente de uma imprensa na Suécia, na Suíça, hoje, e ao mesmo tempo ela tem deficiências de investigação, de apuração. Isso faz com que muitas vezes ela erre, mesmo. Eu não saberia dizer se são erros propositais, intencionais, ou viés ideológico, ou partidário, como vários leitores ou organizações apontam.


Houve falta de equilíbrio e de pluralismo


Mas a verdade é que em alguns momentos ela errou. Eu tentei tratar disso, do equilíbrio e do pluralismo. A minha referência da cobertura, o tempo todo, foram os compromissos públicos que a Folha de S. Paulo assumiu por vontade própria. Não fui eu que inventei. Ela é que em determinado momento colocou claramente: nós vamos fazer um jornalismo crítico, apartidário, pluralista, moderno, equilibrado. Quando ela definiu isso publicamente e criou a função de ombudsman, e quando eu vou para essa função, eu me sinto na obrigação de cobrar dela que isso seja cumprido. Eu não fiquei inventando o que cobrar da Folha. Eu cobro quase que única e exclusivamente os compromissos que ela própria assumiu publicamente, por vontade própria, através de seu manual de redação, de seu projeto editorial, de seu marketing, da sua publicidade, das suas campanhas de assinatura. Na verdade, o que eu acabo cobrando do jornal é coerência.


Dois processos eleitorais. No meio, o famosíssimo “mensalão”.


M.B. – Os escândalos políticos todos. Entre a eleição municipal de São Paulo e o fim da eleição presidencial, segundo turno, foi praticamente um período contínuo de acirramento político no país, com reflexo na imprensa. A relação entre poder, governo federal, e imprensa foi marcada por isso. A relação de partidos políticos com a imprensa. Foi um período bem difícil do ponto de vista do exercício da função de ombusman. Ao mesmo tempo, rico.


É obrigação ser crítico, mas não só do governo federal


Existe uma idéia muito disseminada, principalmente na internet, e muito agressiva, que se reproduz o tempo todo, de que a mídia estava toda unida para arrebentar o governo. Qual é sua visão desse ponto tão sensível?


M.B. – Se há algo a criticar, e eu critiquei em diversas ocasiões no caso da Folha, mas acho que de alguma maneira isso pode ser estendido para os outros grandes jornais, não é o fato de a Folha e outros jornais terem sido críticos em relação ao governo Lula. Isso é uma obrigação, por essas circunstâncias todas que eu mencionei. Há um dado que pouca gente leva em conta: qualquer governo federal, no Brasil, tem um poder incomensurável, não tem mídia, não tem rede, não tem empresa privada que tenha condição de fazer frente a esse poder. Inclusive o poder de comunicação. Eu considero um pouco uma balela essa história de que o governo foi boicotado, não tinha como se comunicar. Ele se comunicou o tempo todo. Assim como os governos Fernando Henrique, Itamar, Collor, Sarney. Porque a máquina de comunicação não passa pela imprensa. Quer dizer, também passa pela imprensa. Mas ela tem a publicidade própria, tem a rede própria, tem os jornais do interior, tem a influência…


O governo federal é a principal fonte dos jornalistas…



M.B. – … tem uma força que, se não houver contrapressões, como um Ministério Público, um Legislativo forte, um TCU, a imprensa, é um absurdo total, uma anomalia. Eu acho que a imprensa tem um papel fortíssimo e exerceu esse papel, na medida do possível, em relação ao governo Lula. Não vejo problema na cobertura que foi feita em relação ao governo Lula. Não vejo aí antilulismo. Eu me recordo de matérias que o Fernando Henrique, na época dele, abominou, queria matar. O Eduardo Jorge [Caldas Pereira], até hoje… Foram centenas e centenas e centenas de reportagens contra Eduardo Jorge. Essa coisa de ir em cima do poder não é algo inédito, exclusivo do governo Lula.


Os dois erros da imprensa nessa cobertura são que ela não cobre, da mesma maneira que cobre o governo federal, e deveria cobrir, guardadas as proporções, mas mesmo guardadas as proporções ela nem se aproxima, é o governo estadual. E eu me refiro principalmente a São Paulo. O governo estadual e o governo municipal são relegados a segundo plano. Não agora, porque são tucanos. Tradicionalmente. Pela centralização mesma do país, e pela idéia de se fazer um jornal nacional. Com isso, a cobertura de política estadual é quase miserável. E a municipal, mais miserável ainda. Se tivesse havido uma cobertura séria, estadual e municipal, de alguma maneira se estaria contrabalançando a cobertura federal, porque se estaria cobrindo bem, e criticamente, um adversário do governo federal. O governo de [Geraldo] Alckmin, por exemplo. Mesmo tendo-se uma proporção – o governo federal tem que ter uma cobertura maior –, se teria uma coisa próxima. Ora, nós terminamos a eleição presidencial e não se viu um balanço sério, profundo, do que foi o governo Alckmin em São Paulo. E no entanto são jornais de São Paulo, Folha e Estadão. O balanço que se tem do governo federal, crítico, está correto, na minha opinião. Mas tem que se fazer também do governo estadual. Mas não só para contrabalançar a outra cobertura. Trata-se do maior estado do Brasil, onde está concentrado o segundo orçamento do país, onde há partidos dirigindo. Todo mundo que sai desse estado vai ser candidato à presidência da República, os interesses dos leitores da Folha de S. Paulo estão nesse estado, embora estejam também em Brasília.


Cobertura de má qualidade


A segunda falha grande que ajuda nessa percepção de que pode ter havido uma perseguição é a qualidade da cobertura. Que, na minha opinião, foi ruim, porque ficou condicionada às CPIs, à Polícia Federal, ao Ministério Público. E eu acho que hoje a investigação jornalística é mais bem-feita do que era no período Collor, mas continua irregular. Quando se faz uma boa cobertura, de investigação própria, se tem material muito bom. Mas isso está cada vez mais raro. Os jornais viraram caixa de ressonância do Ministério Público, da PF, da CPI, portanto da oposição, de uma certa maneira.


Se tivesse havido uma cobertura jornalística de melhor qualidade, o governo teria tido mais problemas. Mas ficaram girando em torno das CPIs, deixaram de apurar tanta coisa.


M.B. – Hoje as equipes são menores, menos experientes, e, em vez de uma cobertura intensiva, há uma cobertura extensiva. As pessoas tinham que ficar o dia inteiro vigiando as CPIs. Quando se fica o dia inteiro vigiando uma CPI não se está fazendo investigação própria. No final do dia, tem que ter matéria. A única matéria que se vai ter é o que será dito por um integrante da CPI. Eu não sou crítico da cobertura em relação ao governo federal, qualquer que ele seja, e nem ao governo Lula. Eu sou crítico daquilo que os jornais deixam de fazer.


Jornais não têm mais sucursais, nem correspondentes


No domingo (25/3), em sua coluna, está escrito que seria melhor cobrir mais Brasil e menos Brasília. Os jornais não têm mais sucursais grandes. [Ver ver “O foco da Folha” .]


M.B. – Não têm sucursais.


Só correspondentes.


M.B. – Nem correspondentes. Hoje, jornais como a Folha, o Estado e o Globo, fora de suas sedes, se é do Rio tem Brasília e São Paulo e, se é de São Paulo, Brasília e Rio. E depois uma pessoa em Porto Alegre, uma em Curitiba e outra no interior do Paraná, duas no Nordeste, uma na Amazônia inteira, em Manaus. Cada um tem um só para a Amazônia inteira.


Luta pelo bolo publicitário passa ao largo da questão da credibilidade


O senhor acha que os jornais estão no caminho certo para enfrentar o desafio do jornal impresso hoje?


M.B. – Seria pretensioso responder a isso, porque são executivos que vivem 24 horas por dia esse problema e eu estou afastado de cargo executivo em redação há três anos, mas a impressão que eu tenho é que há um equívoco. O foco todo se dá na questão do negócio, e o diagnóstico que se faz do problema do negócio, hoje, está na perda de percentual no bolo publicitário. Então, a ênfase toda é recuperar percentual no bolo publicitário. Pode ser que do ponto de vista dos negócios esteja correto, não sei como vai acontecer. Agora, do ponto de vista da crise, eu, mais distanciado, vejo que há um problema sério de conteúdo, de credibilidade, mal avaliado até este momento. As pesquisas, principalmente a do Ibope, que faz uma regularmente, continuam dando um índice de credibilidade bastante alto para os jornais. Sempre segundo, terceiro ou quarto na escala das instituições. Mas eu acho que isso se dá principalmente por causa de um entendimento do passado. Tem-se um percentual muito pequeno de leitores de jornal, hoje. Os três grandes jornais perderam nos últimos cinco anos aproximadamente um terço de circulação. Isso equivale a dizer que um deles teria acabado, nesses cinco anos.



Os jornais seguem trajetória errática


Com a população aumentando, a escolaridade…


M.B. – Exatamente. Eu tenho uma interrogação em relação a essa avaliação de credibilidade. Não contesto. Precisaria fazer pesquisas mais aprofundadas, ter uma discussão. Esse é outro problema que a gente praticamente não discute no Brasil, meios, mídia, imprensa. A idéia de que o problema está no negócio, do ponto de vista empresarial, eu tenho dúvida. Acho que tem uma discussão grande de conteúdo. Que jornal se deve fazer? Os jornais estão erráticos há bastante tempo. “Temos que fazer um jornal mais ilustrado, mais colorido, com notinhas menores, matérias menores, os leitores não têm tempo, temos que mudar o cardápio”. A vida é isso mesmo, tentativa, acerto. Mas a impressão que eu tenho é que não se tem o foco na questão do conteúdo. O foco está fora. E por isso há uma trajetória errática, nos últimos anos, na minha opinião.


Por exemplo, os três grandes jornais não sabem como tratar direito a questão das celebridades. “Não vamos dar nada? Mas vai aparecer na televisão, na capa do Dia, do Extra, vai aparecer na internet a fofoca, não vamos dar nada? Se nós dermos, vai parecer que somos fofoqueiros, fazemos jornal de fofoca. Vamos dar o Chico Buarque beijando uma mulher na praia ou não vamos dar? Isso é notícia ou não?”


E então, ou não dão, ou dão com um espaço imenso. Não existe uma clareza sobre o tipo de jornal que se deve fazer numa conjuntura em que está tudo mudando. É uma conjuntura difícil. Você se imagine hoje no comando de uma redação de jornal diário…


É difícil comandar uma redação



Muito difícil. Tarefa muitíssimo difícil.


M.B. – Como acertar a mão num negócio, é negócio, não se pode abandonar isso, é dinheiro, venda, tem um papel social importante, numa conjuntura de mudança completa, com presença de internet, de canais de notícias a cabo cada vez mais fortes, de explosão de meios de acesso à informação rápida?


Uma outra observação sua na coluna de domingo, entre tantas feitas a partir de estatísticas com palavras-chave, é referente ao tratamento dado às favelas. Existe aí toda uma discussão.


M.B. – Fiz de propósito, porque é uma coisa que me incomoda há muito tempo. Não deu para aprofundar, mas aquilo ali é bem marcante [“Uma lupa na cobertura de favelas: de 712 textos levantados que tinham favela como palavra-chave, 72% a associavam a morte, violência, assassinato, tráfico e outros crimes”.] Quando se examinam várias outras coberturas, com essa mesma perspectiva, é impressionante como é uma cobertura imediatista. Vemos galhos, nem árvores, menos ainda floresta. E são marcadas por falta de reflexão. Os jornais todos fazem coisas absurdas. Coberturas que não têm o mínimo de reflexão sobre o que aquilo significa.


Cobertura precária da violência


Por exemplo, a questão da violência.


M.B. – Como está sendo tratada essa questão…


Se bem que os jornais estão menos ruins do que a televisão. A televisão está um escândalo.


M.B. – Os jornais estão menos ruins, estão melhorando, têm evoluído. Eu me surpreendi, por exemplo, com o número de reportagens que a Folha publicou nos últimos anos sobre política de segurança pública. Eu pedi para fazer aquele corte exatamente porque eu imaginava que não ia aparecer quase nada. [“Há dois aspectos notáveis em 2006 em relação a 2002: a explosão de textos sobre o PCC (de 30 textos para 1.405), explicada pelos ataques organizados a partir dos presídios, e a maior presença de notícias com enfoque em segurança pública (528 para 1.144)”.] Não estou dizendo que naquelas matérias estava aprofundada a discussão sobre segurança pública. Mas de alguma maneira elas despertaram o assunto. É uma evolução, mas é pouco, ainda, diante do que é dia-a-dia. No ano retrasado nós [Folha] passamos uma madrugada inteira num morro do Rio para depois fazer uma matéria dizendo que os traficantes estavam com uma promoção – se a pessoa comprasse dois ou três, não sei quantos papelotes de cocaína, depois de dez ganhava mais um. E daí, meu Deus do céu?! Não tem importância, não repercutiu, não sobrou, não ficou nada. E no entanto há prisões de grandes traficantes, fora dos morros, que são dadas muito mal.


O traficante colombiano que tem 30 apartamentos em Miami (Alexander Pareja García), o libanês que estava construindo uma mansão com detalhes em ouro em Vinhedo (Joseph Nour Eddine Nasrallah).


M.B. – Os jornais deram num dia, não saiu nada no dia seguinte. E os jornais ficam dias e dias tratando de assuntos muito menos relevantes… Tem que tratar, também, mas é zero diante da questão dos grandes traficantes.


Vidraça e estilingue


Quando o senhor estava na redação e tinha ombudsman “enchendo o saco”, o que o senhor achava dele, ou, para fazer brincadeira de torcedor de futebol, da mãe dele?


M.B. – Desde que foi implantado, em 1989, eu sempre respeitei. Eu já tinha uma informação sobre o ombudsman. Eu tinha ido pela própria Folha, dois ou três anos antes da implantação, para a Espanha, e uma das coisas que fiz lá, a pedido de Otávio Frias Filho [diretor de redação da Folha], foi ver a experiência do El País, que tinha acabado de criar a figura do ombudsman. Quando Caio Túlio [Costa, primeiro ombudsman da Folha] escreveu a primeira coluna eu era editor de Política, foi em meio da eleição presidencial que o Collor acabou vencendo. A primeira coluna dele foi uma crítica violentíssima à cobertura da eleição. Um dos repórteres da minha equipe pediu demissão imediatamente. Eu fui lá, segurei, ele acabou voltando atrás. Eu sempre respeitei. Se está errado, eu digo: Não é bem assim. Tento explicar. Mas um erro que pode ser cometido por um ombudsman, ou um problema que ele possa levantar, se se entender bem a função, é menor diante dos ganhos com uma pessoa séria, preparada, honesta acompanhando o dia-a-dia com uma visão de fora e transformando aquilo em crítica. É evidente que isso deve ser feito – e eu tentei fazer isso durante os meus três anos – de uma maneira impessoal. Nunca citei um repórter, exceto para elogiar.


Ficar distante da redação é indispensável


Exatamente o mesmo critério que adoto neste blogue e no programa de rádio. Só dou nome de jornalista para elogiar.


M.B. – O que for erro, atribuo ao jornal. “A Folha errou”. “A Folha fez uma cobertura péssima”. “A Folha foi desequilibrada nesse caso, não está sendo pluralista”.


Eu já tinha uma simpatia em relação à função, trabalhei com todos os ombudsmans, nunca tive problema. E hoje acho que eu não teria problema com a redação. Pode ser até que tenha e eu não saiba. Mas acho que não, até por essa circunstância de eu tentar fazer sempre uma crítica o mais impessoal e o mais técnica possível.


Uma coisa é não ter problemas e outra é sentir que não está pregando no deserto. Qual é sua avaliação desses três anos?


M.B. – Não se pode pensar muito nisso, senão a pessoa “pira”. A pessoa está distante da redação, não tem um contato imediato, e é bom que seja assim. Não se pode depender, neste trabalho, de avaliar se ele está ou não tendo efeito.


Os fatores que levam aos problemas que se constata são tão imensamente maiores do que aquilo que o ombudsman pode contrapor…


M.B. – Exatamente. Eu sinto que várias questões que eu levantei de alguma maneira foram absorvidas pelo jornal. Mas seria muito pretensioso da minha parte dizer que foram absorvidas porque eu as levantei. O jornal também tem reflexão, tem reuniões diárias, tem uma direção com uma cultura de crítica e autocrítica anterior à instituição do ombudsman, desde 1984 dentro da Folha tem essa cultura de crítica e autocrítica. Seria pretensioso, mas eu acho que em alguns momentos algumas questões que eu levanto acabam sendo reconhecidas pelo jornal. Não reconhecidas no sentido de “Ah, foi o ombudsman”, mas reconhecidas. Em relação a outras eu não sinto a mesma coisa. Sinto que entra por um ouvido e sai pelo outro. Mas eu não sento com a redação para saber se a minha impressão é verdadeira ou não.


Nesse período houve alguma reunião com editores, ou com a redação toda?


M.B. – Não.


O método é esse mesmo?


M.B. – Na Folha, é. Outros modelos não são assim. Por exemplo, o ombudsman do El Tiempo, da Colômbia, o segundo jornal a adotar o ombudsman na América Latina, depois da Folha, e o tem desde então. Já passaram por lá nomes importantíssimos do jornalismo colombiano. Eles têm um trabalho regular com a redação. Eu critico muito a questão do pluralismo, ou da exclusão, ou das favelas, por exemplo. Em Bogotá, nesse jornal, depois de um tempo seguramente o ombudsman faria uma reunião com a redação em que exporia: “Na questão das favelas nós estamos cobrindo assim e assado. A minha opinião é que nós deveríamos ter uma atenção para isso, para aquilo”, o que não significa que o jornal vá adotar. Mas ele tem uma presença. No meu caso não há isso. O que eu faço é colocar na coluna dominical.


Críticas internas tornadas públicas


As críticas internas recebem respostas internas?


M.B. – Recebem.


Isso é publicado?


M.B – Eu coloco sempre na minha crítica, no pé. Todas que eu recebi. Inclusive algumas que eu considerei desaforadas.


Publicar crítica interna é novidade?


M.B. – Existe desde o Bernardo Ajzenberg (2001-2004) [clique aqui para ler a lista de ombudsmans da Folha]. Existia a posição, dentro do jornal, principalmente do Departamento Jurídico, de que essa crítica não deveria ser acessível. Imaginava-se o seguinte: é um funcionário do jornal criticando o próprio jornal. Isso poderia dar munição para quem quer processar o jornal. Com a legitimidade de ser ombudsman. O Departamento Jurídico avaliava que era temerário. Mas a direção do jornal considerou que o ganho de transparência, de crítica, era maior.


A sucessão de ombudsmans da Folha, desde Caio Túlio, foi bem-sucedida. Vai fazer 18 anos.


M.B. – Foi. No sentido de que não houve nunca interrupção…


Alguns não voltaram para cargos de chefia, mas por escolha própria.


M.B – Todos voltaram para a redação. Nem todos continuam no jornal. Vários saíram. Caio teve cargo de chefia, Mário Vítor [Santos], Renata [Lo Prete] está em edição, Marcelo Leite depois editou Ciência.


Folha e O Povo ainda são casos isolados


Por que só a Folha e O Povo, de Fortaleza, e mais alguns poucos adotaram o modelo do ombudsman?


M.B. – Acho que existe uma circunstância infeliz, no nosso caso, que é a origem do ombudsman na Folha de S. Paulo no final da década de 1980, no meio do período mais acirrado da competição empresarial entre os grandes jornais. um elemento presente até hoje. Nasceu um pouco assim: “É mais uma invenção de marketing da Folha”. Isso acabou tendo um peso. Os outros jornais não queriam imitar a Folha. O que eu considero uma pena, porque tanto o Globo como o Estado foram tomando, ao longo dessas duas décadas, várias medidas que desaguariam naturalmente numa função como a de ombudsman, ou de um ouvidor, ou de algo parecido. Eles têm controles interno, crítica interna.


Eu já ouvi um argumento do Rodolfo [Fernandes, editor-chefe do Globo] para não ter ombudsman que é basicamente o seguinte. Se o ombudsman criticou em determinado momento uma reportagem errada da Folha e a Folha mais tarde voltou a cometer o mesmo erro, para que serve o ombudsman? Acho uma redução. Pelo que conheço do Rodolfo, nem acredito que seja realmente essa a razão [clique aqui para ler entrevista onde Rodolfo Fernandes se refere ao ombudsman; procurar entretítulo ‘Ombudsman não impede que a Folha repita erros’]. Acho que a razão mais importante talvez seja essa: porque acabou ficando uma coisa marcada da Folha.


Conviver com ombudsman requer ambiente de independência


Isso em relação aos grandes. Para os outros existe uma dificuldade que o Globo e o Estadão não teriam. Para se criar o cargo de ombudsman é preciso ter um ambiente de independência, com alguns pressupostos.


O primeiro é dizer claramente para o leitorado, ou para os telespectadores, ou seja lá qual foi o meio, quais são os compromissos públicos, os valores. A Folha disse que os valores dela são pluralismo, jornalismo crítico, apartidário, moderno. E não é deixar claro internamente. Isso tem que ser público.


O segundo pressuposto: é preciso ter uma vontade editorial para garantir a independência e a autonomia daquele que você vai nomear com a tarefa de verificar se esses valores estão sendo cumpridos. Isso não é fácil. Tem um custo financeiro – mas não acredito que seja esse o problema principal. Coloque-se na posição de um diretor de redação que paga alguém para todo dia, no dia seguinte, dissecar o jornal de cabo a rabo. Alguns acham que é como se houvesse um inimigo interno. Jornais regionais que, embora possam ser lideranças regionais, têm vínculos fortíssimos com uma hegemonia política. Assistimos isso recentemente no caso do Rio Grande do Norte [o deputado Henrique Eduardo Alves controla a Tribuna do Norte, de Natal; declarou ter comprado, com verbas da Câmara, reportagens favoráveis em seu próprio jornal]. Imagine-se o ombudsman de um jornal em que o proprietário, ou principal acionista, tem a maior boa vontade, quer transformar aquilo numa empresa, quer ganhar dinheiro com publicidade, e na Hora H não agüenta, vai de alguma maneira interferir política ou economicamente – às vezes é um grupo econômico. O que esse ombudsman vai falar no dia seguinte? Ele vai durar? Não vai.


Ele sai da tarefa e vai ter que mudar de estado ou de cidade para continuar na profissão.


M.B. – É preciso ter muita disposição editorial para bancar um projeto desses. “Ah, é marketing”: vai fazer, para ver que marketing custoso é esse.


Pessimismo: ao invés de salto de qualidade, vão criar novos produtos


O senhor vai voltar para a redação e vai nutrir esperanças. É uma condição para voltar. O que acha que pode acontecer de bom com o jornalismo brasileiro, especificamente com jornais, nos próximos tempos? Qual é sua expectativa?


M.B. – Eu tenho uma visão um pouco pessimista. Eu acho que é possível se fazer um bom jornalismo – um país como o Brasil, com o capitalismo que tem, com o avanço que teve, com a tecnologia que tem, com uma sociedade exigente, com uma elevação do número de universitários, mesmo com toda a precariedade do ensino –, eu acho que é possível se fazer um jornalismo de qualidade. Agora, eu acho difícil fazer. Porque essa crise que a gente está vivendo, eu não estou vendo como perspectiva se ter como saída dar um salto qualitativo. O que eu vejo é que ela vai ter como saída criar produtos novos, investir em novas frentes.


Para fazer esse jornalismo que eu acho que é possível fazer, no sentido de melhorar a qualidade, seria preciso ter redações mais fortes do que se tem, mais especializadas, mais experientes – não no sentido de que teriam que ser exclusivamente com pessoal sênior, mas que se tivesse um peso de experiência grande. Sempre foi a fórmula: ter experientes, especialistas e pessoal novo chegando, com pique, com garra, oxigênio, pernas.


As redações ficaram bastante debilitadas com essa crise toda dos últimos anos. Não estão paralisadas, não estão estagnadas, mas é pontual, é reposição de peça. Não é a idéia de que: Bom, vamos dar um salto de qualidade, vamos novamente no mercado pegar bons, excepcionais – tem muita gente boa fora.


Eu acho que é possível fazer um bom jornalismo, mas eu acho que nós vamos continuar fazendo esse jornalismo que nós fazemos hoje. Ele é melhor do que nós já fizemos em várias épocas, mas sua evolução, o ritmo de mudança de qualidade, de qualificação, foi caindo, em relação a 1971, quando eu comecei no jornalismo. Há uma evolução, mas essa evolução foi muito maior no início da década de 1980, e depois foi crescendo, crescendo, e acho que de uns cinco anos para cá, por causa de vários fatores, entre eles essa crise toda, houve uma estagnação da melhoria da qualidade desses jornais.


Não estou dizendo que há cinco anos fazíamos um excelente jornal. Há cinco, seis ou dez anos estávamos fazendo um pouco melhor do que fazíamos um ano, dois anos antes. Mas houve uma paralisia. E também não estou dizendo que não se fazia bom jornalismo no passado. Na década de 1950 temos bons exemplos de revoluções, Jornal do Brasil, Última Hora, revista Senhor. Em vários momentos tivemos oásis de bom jornalismo. O que caracteriza a década de 1980 é que isso foi disseminado em mais empresas. Mesmo fora do eixo Rio-São Paulo, em capitais do interior, havia um jornalismo melhor. O ritmo da mudança se reduziu.