Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os jornais e o jornal de cada um

Bela ideia teve quem decidiu transcrever no Estado de S.Paulo da segunda-feira, 23, o artigo “O Eu Diário” do colunista Nicholas D. Kristof, do New York Times [leia aqui].


“O Eu Diário” – nome inventado por outro Nicholas, o Negroponte, guru de midia do MIT – é o jornal ideal de cada um de nós. Só traz as notícias de que gostamos e os comentários com que concordamos.


Isso a internet proporciona muito mais que o jornal-papel. Nele, é claro, podem-se pular os fatos e as interpretações que nos desagradam, os autores que nos são antipáticos. No limite, sempre se pode mudar para um periódico mais próximo de nossas predileções e preconceitos.


Mas a internet simplifica imensamente o processo. Nela, para começar, cada texto tem muito mais autonomia, vida própria, do que na página impressa, pelas próprias características de um meio e do outro. E basta o proverbial clique de mouse para garimpar de site em site aquilo de que realmente estamos atrás: a ratificação dos nossos pensamentos, afinidades e idiossincrasias – em suma, a nossa imagem espelhada e certificada.


Na internet, escreve o Nicholas jornalista antes de citar o Nicholas cientista, cada um de nós se torna o seu próprio editor, aquele que decide o que e quem entra no espectro das nossas preferências, ou fica de fora dele. O resultado é o “meu jornal”, no sentido mais literal possível, “O Eu Diário”.


E se assim se comporta a maioria dos internautas, se essa, como teme o colunista, é a tendência, “Deus nos proteja de nós mesmos”, se alarma.


É da natureza humana querer boas notícias. Até aí nada de novo. Na Antiguidade, os poderosos mandavam matar os portadores de más novas. Nem é especialmente uma descoberta constatar que isso influi na atitude do leitor diante do noticiário, incluídos no termo as avaliações e juízos de valor que acompanham os fatos noticiados. Novo (relativamente) é ressaltar que essa influência se impõe na internet com muito mais força.


Boas notícias não são apenas aquelas que, por tantas quantas de uma infinidade de razões possíveis, nos alegram pelo que contém. São também, e isso é que pesa na relação entre o leitor e os escritos com que depara, aquelas que o gratificam por fazê-lo se sentir “mais eu”.


No seu artigo, Kristoff cita “excelentes evidências” de que, no fundo, a maioria de nós não quer propriamente receber boa informação, mas, isso sim, informação que nos dê razão. “Podemos acreditar intelectualmente no entrechoque de opiniões”, pondera ele, “mas, na prática, gostamos de nos abrigar no útero reconfortante de uma câmara de eco”.


O nome do jogo, numa palavra, é corroboração. Dele provavelmente participamos, se não todos, se não o tempo todo, se não em todos os campos, pelo menos o suficiente para pôr em dúvida o conceito do leitor pura mente aberta, pronto a ler o que sabe que não lhe agradará, mas, afinal, temos de experimentar de tudo em pouco.


A necessidade de conforto intelectual e emocional é o que, confessa o colunista, está por trás do que ele próprio escolhe ler sobre o Oriente Médio, por exemplo. Lê o blog tal porque o seu autor, diz, é inteligente, bem informado e sensato – “em outras palavras”, ironiza, “eu frequentemente concordo com ele”.


Para quem se interessa por americanidades, o artigo tem um atrativo adicional. Faz a ponte entre o presumível “Efeito Eu Diário” e um aspecto do que seria a propensão dos americanos para o conformismo. Eles tenderiam cada vez mais a se juntar com os seus semelhantes, segregando-se “em comunidades, clubes e igrejas em que estão rodeados de pessoas que pensam como eles”. A internet seria uma mão na roda para reforçar essa busca por homogeneidade.


Mas isso é problema lá deles. O problema do jornalismo, lá, cá e em toda parte, é como lidar com essa leitura seletiva que filtra as notícias pelo critério, em última análise, da conveniência pessoal – e que, nessa medida, bate de frente com ecumenismo embutido no ofício de informar. Ou seja, a regra de mostrar todos os lados, até onde humanamente possível, dos fatos que se publicam.


Se a internet é tudo que poderiam querer aqueles que a percorrem para se encontrar a si mesmos, ou, como escreve Kristof, para ver confirmada a sua sabedoria, mais uma razão para os sites informativos assediá-los com o espetáculo da diversidade da sua oferta noticiosa – e opinativa.


O modo como se estrutura um jornal impresso expõe o leitor muito mais ao que ele na internet pode evitar sem pensar duas vezes. Daí a necessidade comparativamente maior do assédio.


Afinal, já dizia nos anos 1920 o humorista americano Finley Peter Dunne, a função da imprensa é “confortar os aflitos e afligir os confortados”. Na situação de que se trata, ênfase em “afligir os confortados”. Se eles vão à net para achar um espelho que lhes permita contemplar as suas crenças na cabeça alheia, a ordem é dificultar-lhes essa procura pela identidade refletida, estilhaçando os cristais, é o caso de dizer, para multiplicar os pontos de vista, as perspectivas.


Isso nada mais é do que fazer – com a intensidade que a internet exige – o que se tem o direito de esperar de todo órgão de imprensa que não seja, ostensiva ou disfarçadamente, correia de transmissão de ideologias, partidos, grupos econômicos, religiões, enfim, de interesses constituídos.


É servir de instrumento de promoção do debate público sobre as questões trazidas no próprio noticiário, abrindo espaço ao contraditório, como se fala hoje em dia. O periódico ideal, desse ângulo, é aquele com o qual nenhum leitor possa se identificar plenamente e no qual todos possam encontrar algumas de suas convicções.


É a alternativa para “O Eu Diário” que, alerta Kristof, reduz a pretos e brancos “um mundo que tipicamente se desenrola em cinzentos”.


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Em tempo: no Brasil, a má notícia é que a mídia impressa é menos diversa do que poderia ser (e, em alguns jornais, já foi). A boa notícia é que ela está aprendendo a tirar proveito do espaço ilimitado da internet para ser mais pluralista nas suas edições online.