Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os sem-avião e os seus vizinhos

Além de trazer meia dúzia de boas matérias sobre o que poderá, ou não, mudar na aviação comercial brasileira – descontado o noticiário do pós-desastre propriamente dito – o Valor publica hoje a reportagem mais original que já vi a respeito do apagão aéreo. Os autores são Caio Junqueira e Cristiane Agostine. Ocupa todo o espaço útil de uma página.

O tíítulo, como deve ser, já diz tudo: “Abismo social divide opiniões sobre a crise”. Vale leitura.

“Pelo céu e pela terra, eles estão conectados a Congonhas. Uns, com maior poder aquisitivo, utilizam-no para comparecer aos seus compromissos de trabalho ou para fazer turismo no país ou no exterior. Outros, que nunca o utilizaram, moram na favela Águas Espraiadas, a mais próxima ao mais movimentado aeroporto brasileiro. A dez minutos de caminhada da cabeceira da pista, vivem em condições precárias cerca de 500 famílias que se ligam ao aeroporto, seja pelo vínculo profissional ou pelo cedo despertar que os aviões provoca.

Em tempos de busca de culpados, a intimidade e a diversidade que essas pessoas têm com o cenário do mais trágico acidente da aviação nacional os credencia a opinar sobre as causas de uma crise aérea que chega aos dez meses sem prazo para solucionar-se. No abismo social que as diferencia, uma única passagem de avião custa mais do que o mês inteiro de trabalho dos vizinhos de Congonhas. Esse abismo também está retratado nas opiniões sobre os culpados pela crise aérea.

Dentro do saguão do aeroporto, os passageiros que aguardavam seus vôos atrasados apontam um amplo rol de culpados, encabeçados pelo governo federal, na sua mais representativa figura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda assim, ele divide o espaço com o apetite financeiro das companhias aéreas, com o comando, ou não-comando aéreo nacional e com a sociedade em geral, tida como apática, passiva e tranqüila demais quanto ao que a afeta.

Na favela, ao contrário, a crise não colou no presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para os moradores ouvidos -a maioria de eleitores petistas – o principal responsável é a Infraero, principalmente por ter liberado a pista para pouso antes do completo término da reforma. Medida tomada, segundo eles, após grande pressão das companhias aéreas. O governador paulista, José Serra (PSDB), e o prefeito Gilberto Kassab (DEM), são tidos como ‘oportunistas’ por usar o local da tragédia para fazer críticas ao governo federal.

Moradora da comunidade, Arlene Alves Santos, de 26 anos, acredita que a culpa está na pressão das empresas. ‘Foi antes de colocarem os anti-derrapantes’, explica, de uma forma simples. Os relatos de seu marido, que trabalha na infra-estrutura do aeroporto, e sua própria experiência de já ter prestado serviços de limpeza por quatro anos a uma companhia, ajudam-na a argumentar que o lobby dos empresários do setor aprofundou a crise aérea. ‘Agora ainda vem a Infraero dizendo que vai aumentar a passagem. Mas há quanto tempo esse problema está acontecendo? Não adianta. É para pagar os prejuízos dos aeroportos.’

Vizinha de Arlene e uma das líderes da favela, Marluce Alves Bezerra diz que começou a acompanhar a crise nos aeroportos neste ano, desde que viu pessoas dormindo nos aeroportos e também chegou à conclusão parecida de sua colega. ‘O problema é que foram encostando aviões e não aumentaram a pista. Os empresários, os donos das empresas aéreas sabem o que acontece’, afirma. ‘As parcerias entre governo e empresários deveriam aumentar. Se os empresários se preocupassem mais, isso não teria acontecido.’

Olhando para os painéis dentro do aeroporto, o economista João Camargo, 59 anos, compartilha da mesma opinião, embora seja eleitor do PSDB: a culpa maior é das companhias. ‘Vejo uma indústria que tem um acréscimo total de receita de 20% e lucro líquido de 25% nos últimos três anos. E ainda conseguem criar esses embaraços. Falta de dinheiro não é. É incompetência mesmo. Temos duas empresas que dominam o mercado e tem força, não se deram conta que estão matando a própria indústria que lideram’, afirma ele, que tenta desde segunda-feira retornar a Goiânia. Estende, porém, sua avaliação crítica para o governo federal, que, afirma, não prioriza a classe média, é refém dos grandes grupos econômicos e só trabalha para a classe marginalizada.

Na favela, a filha de Marluce, a jovem Marília Alves Bezerra, de 19 anos, segue o economista no ataque ao governo. Ao contrário dos seus companheiros de bairro, ficou indignada com a ausência dele e lembra que até o mesmo o presidente argentino mostrou solidariedade antes do brasileiro. A jovem ressalta, entretanto, que as palavras de Lula não teriam importância, ‘porque ninguém acredita mais nele’. Desiludida com os políticos, diz que seus próximos votos seguirão o mesmo destino de seu primeiro voto: serão anulados.

Marília não é a única a mostrar descontentamento com os políticos. Alguns, insistem em preservar os seus eleitos, como é o caso do aposentado Izael José da Silva Ribeiro, de 60 anos. Ele ataca o desempenho da Infraero e da Aeronáutica na crise, mas não faz nenhuma vinculação ao governo federal, tampouco ao presidente da República. Ex-funcionário de empresas aéreas, Izael também reforça a tese de que os empresários do setor aéreo têm culpa na crise e credita a eles parte do débito.

‘O presidente tem que ajudar os aeroportos, dar mais recursos, desativar Congonhas e transformar o aeroporto em um shopping. Mas não é da responsabilidade dele esse problema todo. É responsabilidade dos donos de avião, da TAM, da Gol’, diz. Eleitor de Lula e da ministra Marta Suplicy, ex–prefeita de São Paulo, o aposentado declara que votará nos dois políticos ‘quantas vezes eles forem candidatos’. ‘Eles fizeram muito pela gente, os pobres’. O apoio a ex-prefeita, inclusive, é à prova de qualquer declaração, como ‘relaxa e goza’, dita pela ministra no meio da crise aérea: ‘Acho que ela não fez por mal. Às vezes a gente fala coisa que não pode.’

Esse afago no presidente da República é contrastado por um jovem casal de Uberlândia, interior de Minas Gerais. Voltando de uma viagem pela França, Holanda, Inglaterra, Bélgica e Itália, eles atacam Lula. Entre as queixas, a vergonha que passaram na viagem pela crise aérea.

‘A visão do Brasil no exterior é muito ruim. A gente é muito mal tratado por causa disso. Depois do acidente, mexicanos vieram falar: ´Olha seu país aí´. Até mexicano! Sem falar que todos os guias turísticos na França ficam tirando sarro do Lula, dizendo que nosso presidente é uma piada A gente fica chateado. Olham a gente de cima para baixo. Dizem que é país subdesenvolvido. Mas subdesenvolvido é quem governa o país’, afirma o médico Rodrigo de Almeida, 34 anos, eleitor tucano que anseia pela candidatura do governador mineiro e tucano Aécio Neves em 2010. ‘O Lula não tem mais moral, perdeu o comando, não sabe o que está acontecendo’, afirma, ao lado da mulher, a advogada Lídia de Almeida, 30 anos.

Tensa com a longa fila e o adiamento do retorno à cidade natal para amanhã, ela reclama das companhias aéreas: ‘As empresas têm a parcela de culpa. Minha relação jurídica é com elas. A gente fica aqui esperando e não dão nem um copo d´água.’

Próximo ao casal, falando tranqüilamente ao celular, o executivo da área de Tecnologia da Informação Carlos Anunciação, 41 anos, diretor comercial na área de TI, diverge de seus colegas de aeroporto. ‘ A crise vem de uma conjunção de fatores. Desde o crescimento da utilização dos aeroportos até a falta de planejamento para suportar isso. É difícil apontar os culpados. Na essência, é da população, porque é ela quem elege os dirigentes.’ Para o executivo falta tanto empenho dos governantes como das companhias aéreas. Mas o problema real do país passa longe dos aeroportos. ‘Tem gente que não tem nem como pegar avião. Fala-se de um caos, mas quantas pessoas utilizam avião? E quantas morrem por problemas de saúde? O problema aqui é que pega uma faixa da população que mexe com o Produto Interno Bruto (PIB). Mas essa crise está longe de ser o pior problema do Brasil.’

***

Os comentários serão selecionados para publicação. Serão desconsideradas as mensagens ofensivas, anônimas, que contenham termos de baixo calão, incitem à violência e aquelas cujos autores não possam ser contatados por terem fornecido e-mails falsos.