Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Palavrório levado a sério engana o leitor


Continua a síndrome da imprensa brasileira no noticiário sobre a Venezuela e seu presidente, Hugo Chávez. Desta vez, foi O Globo, que vendeu gato por lebre aos seus leitores na manchete principal da segunda-feira, 23 de maio – ‘Chávez quer fazer acordo nuclear com Irã e Brasil’.


A contraprova de adulteração requer passagem por outros jornais do mundo, a começar pelos dois principais jornais venezuelanos – El Nacional e El Universal, de oposição declarada a Chávez. Para ambos, o ‘acordo nuclear’ do O Globo foi mais um dos tantos assuntos tratados no palavrório dominical do ‘Alô, Presidente’, transmitido pela tevê estatal.

Na mesma segunda-feira, nos Estados Unidos, principal voz e polícia contra a proliferação nuclear, o The New York Times ignorou o assunto, assim como o The Washington Post e o The Wall Street Journal. Na Europa, o britânico Financial Times também não deu a mínima, assim como o francês Le Monde. Onde a arenga de Chávez foi notícia, como no espanhol El País, manteve-se o foco das agências internacionais: a nova onda de malevolências e provocações de Chávez contra os Estados Unidos inspira-se no silêncio da Justiça norte-americana ao pedido de extradição de Luis Posada Carriles, ‘foragido da Justiça venezuelana’, preso na semana passada. ‘O mandatário dedicou mais de uma hora de seu programa ao tema de Posada Carriles, reclamado pela Venezuela, onde responde a uma ação judicial pela explosão de um avião da Cubana de Aviação, em outubro de 1976, que causou a morte de 73 pessoas’, informa o jornal espanhol.


O Globo anabolizou a manchete fazendo uso de um dos trechos da fala de Chávez, que foi reproduzido com variações pela imprensa internacional. O venezuelano El Universal, na reportagem ‘Presidente disposto a experimentar energia nuclear no país’, traz: ‘Nós podemos, junto com o Brasil e a Argentina, países da América Latina, pedir apoio ao Irã, não para fazer bombas e lançá-las em uma cidade, como fizeram os norte-americanos’.
Na Argentina, citada por Chávez, o Clarín, mais vendido do país, trouxe duas reportagens e um ‘Ponto de Vista’ na edição da mesma segunda-feira. No texto principal, ‘Chávez desafia os EUA: quer desenvolver programas nucleares’, a declaração do presidente venezuelano é reproduzida com mais detalhe: ‘Temos de começar a trabalhar no tema nuclear. Nós podemos perfeitamente, também junto com o Brasil e a Argentina, e outros países da América Latina, adiantar as pesquisas na área nuclear e pedir apoio a países como o Irã ou a Europa’.


Na reportagem secundária, o economista Aldo Ferrer, da diretoria da Enarsa, a estatal nuclear argentina, confirma a informação, dada por Chávez, de que o programa nuclear argentino, suspenso no governo de Carlos Menem, foi reativado. ‘Seria interessante uma cooperação com a América Latina. A Argentina tem um papel importante a ser cumprido’, disse, sugerindo uma pauta a ser explorada. No ‘Ponto de Vista’, a jornalista Paula Lugones, escreve: ‘O presidente da Venezuela não se cansa de lançar mísseis sobre a Casa Branca. Agora fala de desenvolvimento de programas nucleares – frase maldita para Washington – e até aventura-se a pedir ajuda ao Irã, considerado parte do ‘eixo do mal’ pelos EUA’.


O La Nación, segundo jornal mais vendido na Argentina, trouxe no mesmo dia apenas uma reportagem – ‘Chávez quer desenvolver um plano nuclear’ – e sublinha que ‘o presidente venezuelano afirmou que pedirá apoio à Argentina e ao Brasil’. A declaração, acrescenta, ‘intensificou a escalada da tensão entre Washington e Caracas’. Chávez, segundo o jornal, disse o seguinte: ‘Estamos interessados no tema nuclear. Podemos perfeitamente, junto com o Brasil, junto com a Argentina, junto com os países da América Latina, acelerar as pesquisas na área nuclear e pedir apoio a países como o Irã’.



Como se vê, nenhum dos jornais traz a palavra ‘acordo’ que sustentou a manchete do O Globo – todos falam de ‘apoio’ . Acordo e apoio não são sinônimos nos dicionários, e muito menos quanto se trata de energia nuclear, com exceção das negociatas do mercado negro. O anabolizante dilui-se na reportagem, onde se emprega a palavra ‘ajuda’, mas volta no texto ‘Para o Brasil, proposta temerária’, que deixa mais dúvidas no ar, pois fonte alguma sustenta o temor. O fantasma da imprecisão recorre ao atacado: ‘nos bastidores, autoridades do governo consideraram a proposta de Chávez temerária, principalmente por envolver uma cooperação com o Irã’.
Em nenhum parágrafo, O Globo informa que o ‘acordo nuclear’ brotou durante o exercício predileto do presidente venezuelano: falar pelos cotovelos.


Os outros grandes jornais brasileiros que entraram no assunto desmontaram a embromação no dia seguinte. A Folha de S.Paulo recorreu a especialistas nacionais e estrangeiros da área, que resumem a questão a mais um delírio de Chávez; O Estado de S.Paulo, mais preciso, reproduz avaliações de fontes da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) que se escondem no anonimato, certamente para escapar do ridículo de comentar o que não existe. O ‘alto funcionário’ da agência vai ao ponto: foi ‘mais uma tentativa de irritar os EUA’. A reportagem esclarece que a Venezuela é signatária do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e que qualquer iniciativa deverá, antes, receber autorização da AIEA.


Na mesma terça-feira, O Globo tentou salvar a barriga do dia anterior, com ‘Alencar: parceria com Chávez é conjectura’. Duas fontes comparecem: o vice-presidente em exercício e ministro da Defesa, José Alencar, que desmente o disparate, e o porta-voz do Departamento de Estado, Richard Boucher, que neutraliza o anabolizante por completo: ‘É mais uma daquelas declarações dele (Chávez). E não é relevante em relação ao caso que temos em mãos (a extradição de Posada Carriles). Por isso, acho que não preciso lidar com isso’.
O mini-editorial ao lado da reportagem, ‘Talvez sim, talvez não’, tenta inutilmente sustentar a manchete principal do dia anterior, e novamente comete a impropriedade de usar a palavra ‘acordo’. No terceiro parágrafo, reconhece que ‘é indisfarçável a intenção provocadora de Chávez’, mas transfere a conta de seu exagero para o governo federal: ‘Parceria no projeto megalomaníaco do presidente venezuelano — que fez da hostilidade aos EUA a obsessão juvenil de sua política externa — só se o governo Lula quisesse jogar no lixo, num gesto igualmente autodestrutivo, a credibilidade do projeto nuclear brasileiro’.


A credibilidade ameaçada, no caso, é do próprio jornal.