Uma senhora, que se recusa a ser identificada, procurou pelo menos um órgão de imprensa na semana passada para dizer que, certa noite em fins de 1999, por acaso, viu o padre Júlio Lancellotti beijando um adolescente numa dependência da Casa Vida 2, em São Paulo, onde ela trabalhava. A entidade, da qual o padre é um dos fundadores, cuida de jovens portadores do vírus da aids.
Deve ser a mesma mulher que, sem aparecer, contou a mesma história num programa da TV Record, domingo à noite.
Hoje está nos jornais que, procurada pela polícia, ela gravou um depoimento numa delegacia, na terça-feira. De novo, pediu anonimato. A acusação resultou na abertura de inquérito para apurar a história do “ato libidinoso” [a expressão é do delegado responsável pela investigação] que a então funcionária da entidade diz ter presenciado.
Se comprovado, o padre será processado por corrupção de menor. A denunciante diz não saber quem era o jovem. A polícia quer identificá-lo e localizar a sua família – ele teria deixado a instituição pouco depois do alegado incidente.
À polícia, ela confirmou já ter narrado o episódio à imprensa, que nada publicou.
É a coisa certa a fazer quando é procurada por uma pessoa com uma acusação pesadíssima contra alguém – no caso um conhecido religioso, que revelou ser vítima de extorsão –, mas não assume a denúncia, não apresenta provas, não dá qualquer informação substantiva que permita checá-la, além do “ouvir dizer”.
Por que ela não falou antes? A um interlocutor, alegou que teve “medo”, mas não teria deixado claro do que. À polícia, segundo o Estado, ela mencionou o “temor de que ninguém a levasse a sério”.
Enquanto a polícia se ocupa do padre e do moço, a mídia deveria se ocupar da senhora. Primeiro, para excluir, ou corroborar, a possibilidade de que ela tenha motivos ocultos para fabricar uma acusação deste tamanho.
Afinal, além da questão do tempo transcorrido entre o suposto “ato libidinoso” e a denúncia, pelo menos duas dúvidas pedem para ser esclarecidas: por que ela tomou a iniciativa de procurar a imprensa e não a polícia? Por que o anonimato?
Quem diz o que disse a ex-funcionária da Casa Vida – e ainda por cima nessas condições – merece passar pelo pente fino da imprensa.
Quanto mais não seja, para assegurar que não se repita com o padre Lancelotti a tragédia dos donos da Escola Base, cujas vidas a polícia e a mídia arrebentaram por causa de uma acusação que se revelou, tarde demais, caluniosa.
Por falar em acusação: o caso Renascer
É comum, nas redações, ouvir queixas contra assessorias de imprensa – de comunicação, como passaram a se chamar – cujas sugestões de pauta ou deixam clara a intenção de puxar o repórter pelo nariz até onde interessa ao cliente da assessoria, ou, de tão toscas, praticamente imploram para ser apagadas do computador do destinatário.
O reverso da moeda é a queixa dos assessores que concebem o seu trabalho como desbravadores de caminhos os quais, se bem percorridos, resultarão em reportagens úteis – assim dizem crer – tanto para o leitor quanto para os assessorados.
Um exemplo de desperdício de pauta parece terem sido as matérias do Estado e do Diário de S.Paulo de ontem sobre as acusações do promotor Marcelo Mendroni, do Ministério Público paulista, contra a auto-denominada Igreja Apostólica Renascer em Cristo.
Os dirigentes da Renascer, Estevam e Sonia Hernandes, estão presos nos Estados Unidos, onde respondem a processo por lavagem de dinheiro. Há ordem de prisão cautelar contra eles no Brasil.
Pois bem. Na terça-feira, o promotor Mendroni convocou uma entrevista para informar que uma inspeção em três entidades beneficentes mantidas pela igreja revelou estarem em situação “precária” porque, segundo ele, o dinheiro que serviria para mantê-las, arrecadado dos fiéis, foi nutrir “o patrimônio pessoal dos chefes da Renascer”.
Em consequência, afirmou o promotor, os seus internos são obrigados a trabalhar para levantar os recursos sem os quais elas não teriam como funcionar.
A assessoria de comunicação da igreja respondeu com um texto de 800 palavras que é um híbrido de candente desmentido formal [“Uma denúncia que não resiste à luz do sol”] e pauta circunstanciada para o órgão de mídia que quisesse tirar a limpo o que se passa nas três entidades, uma em Franco da Rocha, outra em Santana do Parnaíba, outra ainda em Heliópolis, São Paulo.
“A mentira não resiste a uma reportagem bem feita”, provoca o texto.
Qualquer que seja a verdade, é inegável que o texto é uma pauta bem feita. Diz, em cada caso, o que são as instituições, a quem atendem, de onde vêm os assistidos, o que se faz nelas, onde ficam e quem as dirige.
A idéia da assessoria é que os repórteres fossem ver as coisas com os seus próprios olhos, como se diz, e quando lhes conviesse, sem monitoramento.
Nem o Estado, nem o Diário, a julgar pelo que deram, ouviram os principais interessados – os assistidos, seus parentes, a vizinhança, para saber o que acham das acusações do promotor. E, seja lá o que os olhos dos repórteres tenham visto, para o leitor sobrou pouco.
A matéria do Estadão termina com uma frase sumária e cuidadosa: “O Estado visitou ontem a entidade que cuida de crianças em São Paulo, na favela de Heliópolis, duas semanas após a inspeção da polícia e da promotoria, e não viu problema aparente”.
O outro jornal é mais informativo: “Ontem, o Diário visitou uma das unidades, em Heliópolis. Lá, a reportagem constatou problemas na infra-estrutura do prédio, como rachaduras na fachada, algumas infiltrações nas paredes e sujeira no piso. A coordenadora da instituição, pastora Nádia Felfele, disse que o problema no piso e paredes é porque o prédio ficou muito tempo sem telhado, e o das rachaduras é porque houve um problema com a massa corrida da fachada. A coordenadora afirmou ainda que a Renascer envia a ela cerca de R$ 1 mil por semana, além de pagar todas as contas do lugar”.
E se ela mentiu? Como saber se as famílias das crianças ali atendidas não precisam, elas, cobrir “as contas do lugar”?
No fundo, é o de sempre: um lado, outro lado; fala o acusador, fala o acusado. E lá de foi mais uma oportunidade de contar uma boa história sobre uma organização cercada de suspeitas – que, nesse caso particular, podem ser, ou não, procedentes.