Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pegando na veia do racismo no Brasil

As melhores entre as boas matérias de uma publicação jornalística são o que deveriam ser as medidas provisórias: relevantes e urgentes.


Pelos assuntos de que tratam, evidentemente, mas também pelo seu potencial de chamar a atenção do leitor para a relevância e a urgência de assuntos que ele à primeira vista não diria que são uma coisa ou outra.


Os dois termos, também evidentemente, são relativos, e pode-se discutir até o fim dos tempos – que, segundo os pessimistas, vem a galope para a imprensa em papel – até que ponto atende a esses dois critérios o conteúdo predominante em cada edição de um periódico.


Sem falar que, conforme uma certa concepção de jornalismo que, levada às últimas, é o que os americanos chamam infotainment, nem tudo o que se publica deve ser relevante – desde que a informação seja interessante, divirta, entretenha.


Aliás, não são raros os editores para os quais o “produto” ideal é aquele que oferece porções amplas de jornalismo de distração e outras tantas de jornalismo de serviço (indispensável, claro, mas que não deve ser confundido com jornalismo de utilidade pública).


Essa receita será tão mais bem sucedida quanto mais, para usar uma distinção que volta e meia aparece impressa, o leitor-cidadão ceder lugar ao leitor-consumidor – o que, fechando o círculo, não acontece sem o incentivo, cúmplice e constante, dos próprios conglomerados de mídia interessados em ampliar o mercado para o fácil, o fútil e o fugaz.


Em suma, para o tipo de informação que faz parte da esfera do espetáculo e por ele é pautado – o jornalismo é como uma modalidade entre outras de lazer.


A crítica desse descaminho não deve ser confundida com a apologia do jornalismo pesado como forma de capturar e apresentar assuntos de peso. Trata-se, isso sim, da convicção de que, levados ao público com a clareza, a simplicidade e a atratividade possíveis, eles é que balizam a distância entre um artefato jornalístico e a sua contrafação.


No limite, um jornal ou uma revista noticiosa talvez mereçam ser julgados pela frequência e a competência com que encaram aquelas questões, relevantes, urgentes e necessariamente densas, a que a imprensa não pode renunciar, na sua função de mediadora do debate público numa democracia.


Neste último fim de semana, tivemos um exemplo da diferença que faz quando um jornal pega na veia de um daqueles assuntos a partir dos quais uma sociedade se enxerga melhor a si mesma.


É o especial da Folha de domingo sobre racismo: 16 páginas sem um único anúncio, atualizando a sua primeira grande incursão pelo problema – o caderno, publicado em 1995, chamado “Racismo Cordial”.


O de agora – “O Racismo Confrontado” – também se baseia numa pesquisa do Datafolha sobre as atitudes declaradas dos brasileiros a respeito das relações entre brancos e negros. Embora obviamente preparado antes, saiu três dias depois que a Câmara dos Deputados aprovou projeto de cotas para negros, pardos e indígenas que tenham feito o ensino médio em escola pública nas universidades federais brasileiras.


A primeira “notícia” da pesquisa é que caiu dramaticamente, de 11% para 3%, a proporção daqueles que assumem o seu preconceito em relação aos negros, enquanto permaneceu estável (na casa de 90%) o contingente dos que acham que o brasileiro têm preconceito de cor.


Foi como se tivessem dito: “Eu não, mas os outros sim.” Está claro que as pessoas ficaram mais inibidas em manifestar o seu preconceito. A hipocrisia, dizem os franceses, é a homenagem que o vício presta à virtude. Mais disfarçado, o preconceito se rende ao fato de que o racismo é inaceitável.


Também caíram consistentemente as porcentagens de concordância com frases racistas, do tipo “Negro bom é negro de alma branca” (de 47% para 26%) ou “As únicas coisas que os negros sabem fazer bem são música e esporte” (de 43% para 20%).


A outra importante revelação do levantamento é que desta vez só 37% dos entrevistados – ante 50% em 1995 – se declaram brancos. Os “pardos” aumentaram de 29% para 36%, os “pretos” continuam o que eram (12% na primeira pesquisa, 14% agora).


Mas o que é notável no caderno especial é o que a Folha fez a partir e além da pesquisa: as seis reportagens da rubrica “Retratos”, mais três artigos de estudiosos, mais uma entrevista pingue-pongue (com o ministro Joaquim Barbosa, o primeiro negro a chegar ao Supremo Tribunal Federal), mais a excelente série de seis breves depoimentos com experiências pessoais de racismo, em resposta à pergunta “Em que situações a cor da sua pele se mostra relevante?”


Do ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, por exemplo:


”Fui abordado [num vôo para o exterior] pela aeromoça brasileira em inglês e respondi que ela podia falar em português mesmo, porque eu era brasileiro. Um outro passageiro, já sentado, ouviu o diálogo e disse à moça que eu era ministro. Imediatamente, ela perguntou: ‘De qual igreja?’.”


Quase tão bom como o item da pesquisa que pedia aos entrevistados que atribuíssem uma cor a 11 “celebridades nacionais”.


Quarenta e quatro por cento disseram que Ronaldo era pardo. Comentário do jogador: “Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância.” Quarenta e dois por cento disseram que Lula – branco por todos os critérios imagináveis – era pardo também. Assim como outro branco, Caetano Veloso (pardo para 40% dos entrevistados).


A reportagem a respeito cita o historiador Luiz Felipe de Alencastro. O seu argumento:


”Quando se pede para atribuir cores a celebridades, é óbvio que os entrevistados não responderam apenas sobre a pigmentação da pele. Compõem as respostas critérios de qualificação intelectual, os papéis que a pessoa desempenha na sociedade, como ela quer ser vista.”


Daí que o ex-presidente Fernando Henrique, que certa vez se declarou “mulatinho, com um pé na cozinha” foi dado como branco por 70%, e pardo, só por 17%.


O primeiro especial da Folha sobre racismo acabou sendo publicado como livro. É o que merece acontecer com este.