Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pimenta no banco dos réus (2): linchamentos mentais (primeira parte)

A morte da jornalista Sandra Gomide deu início a um tiroteio em que a raiva predomina sobre a razão e o ressentimento ofusca a realidade. O ranger de dentes foi provocado pela forma como os jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo noticiaram na segunda-feira, 21 de agosto, o crime cometido na véspera pelo diretor de Redação do primeiro e ex-correspondente no exterior do segundo, Antonio Marcos Pimenta Neves.


Folha e Estado compartilharam dois erros. A Folha cometeu outros dois ainda — e os críticos mais exaltados erraram ao interpretar uns e outros.


A Folha ignorou o assassinato na primeira página, o Estado deu apenas uma “chamada” discreta, com título em uma coluna e texto nenhum. Dentro, ambos se referiram a Pimenta como “suspeito”. O noticiário on-line de um deles, um dia depois, falaria em “o principal suspeito” — como se pudesse haver mais de um.


À primeira vista, os jornais deram ao assassino o benefício da dúvida habitualmente negado aos criminosos “comuns”. Mas nenhum deles tinha do que duvidar: não bastassem os precedentes alarmantes desde a demissão de Sandra, pouco depois do homicídio Pimenta telefonou para os dois jornais — no caso da Folha diretamente para o diretor e amigo Otavio Frias Filho —, contando que tinha dado dois tiros na ex-namorada. Mais tarde, ligou pelo menos para o Estado, querendo saber se ela estava viva.


Se os jornais fossem levar a ética ao extremo, poderiam ter publicado que o jornalista “disse ter dado dois tiros na ex-namorada e que ela morreu. Mas quem fez a coisa certa foi O Globo, ao informar, simplesmente, na primeira página: “Jornalista mata ex-namorada”.


Já os dois erros exclusivos da Folha, como já se repetiu à exaustão, foram:


Vincular a Pimenta todos os aspectos da carreira de Sandra Gomide, mencionados na reportagem, como se ela nunca tivesse tido vida própria, mas fosse um apêndice dele.


Usar o adjetivo “notável” no título de uma matéria sobre a trajetória profissional de Pimenta, que trai uma admiração fora de hora por alguém que, à parte o seu rico currículo, tinha virado notícia como assassino, ou melhor, “suspeito de matar”.


Foram erros feios, dos quais o Estado escapou graças, talvez, ao cuidado extra e à sobriedade habitual e pelos quais o jornal culpado não se desculparia. Em sua coluna na página 2 da Folha, no dia 31 de agosto, Otavio Frias Filho admitiu como procedente apenas a crítica de que a edição tinha sido “tímida” e assumiu a responsabilidade. Muito pouco e muito tarde.


Duas foram as explicações instantâneas para o tratamento favorecido dado a Pimenta: corporativismo e machismo. Ou seja: “jornalistas protegem jornalistas” e “homens protegem homens”.


O defeito desses juízos é a aplicação sumária e automática de uma dada visão das coisas a uma situação específica. Para esse tipo pavloviano de reação, nunca um caso é um caso, mas é sempre, apenas e tudo isso, uma manifestação particular da regra geral em que se acredita.


É tipico do que já se chamou “cultura da reclamação” ou “cultura da vitimização” um grupo humano tradicionalmente alvo de violências e discriminações — mulheres, negros, judeus, homossexuais, entre outros — atribuir qualquer ato contra algum membro do grupo a essa sua condição. Quando fala alto, o rancor não deixa que se ouçam as mais justas queixas e demandas das vítimas.


Para ficar na imprensa, dificilmente um exemplo desse rancor poderia ser mais apropriado, ou mais deprimente – ou mais previsível – do que o artigo “Assassinato revela todo o sexismo da imprensa”, na Folha de 29 de agosto, da colunista Marilene Felinto, de quem já se conhecia a face anti-semita e o estilo espumante.


Podia ter havido corporativismo? Podia. Mas não houve. Quem melhor explicou por que foi o colunista Clóvis Rossi, também da Folha, cujo costumeiro senso de decência e de equilíbrio percorre da primeira à última linha o artigo “A mídia não matou”, sobre o mesmo tema e no mesmo dia da coluna de seu patrão. “O que caracteriza o corporativismo é uma ação mancomunada de todos, não de um ou dois apenas”, ensinou Rossi. E não há nenhuma evidência de um conluio do gênero.


Imagine-se, além disso, se a Folha trataria com a mesma benevolência um ex-repórter qualquer do jornal que estivesse trabalhando no Estado e tivesse feito o que o outro fez.


A causa primária do viés jornalístico da Folha em favor de Pimenta era a amizade pessoal dele com Otavio Frias Filho, plenamente assumida por este.


No caso do Estado, os laços protetores eram mais complexos. A diretoria do jornal, antes de receber a notícia do crime, já tinha decidido obter a demissão de Pimenta no dia seguinte, porque — além de ter escondido dos patrões a sua relação com Sandra e de ter-lhes mentido sobre as causas de sua saída da empresa — ele havia mandado embora um repórter que a ajudava a conseguir emprego.


Não foi uma decisão fácil. O Estado respeitava Pimenta intelectualmente, aprovava o seu desempenho profissional e, tão importante quanto isso, estava seguro de sua identificação com a linha do jornal. Para a Casa, Pimenta tinha enloqueicod, teria de se ir, mas nem por isso seria tratado no noticiário sem a consideração devida. Em suma, protegeu-se Pimenta por ser quem era, não por ser jornalista.


Podia ter havido machismo? Podia. Mas não houve. Se a Folha informou que a ascensão profissional de Sandra, primeiro na Gazeta Mercantil, depois no Estado, se deveu à sua ligação com Pimenta, não foi — ou ninguém provou que tenha sido — para desqualificar a vítima-mulher, ao mesmo tempo em que endeusava o “suspeito”-homem.


Machista — ou, mais do que isso, onipotente — era a conduta de Pimenta, não a cobertura da mídia. Esta, repita-se, o acolchoou, não porque ele fosse “um dos nossos”, nas palavras Renata Lo Prete, ombudsman da Folha, nem porque fosse homem, mas porque era “especial”.


Machismo, de resto, tem a ver mais com poder do que com sexo. Mulheres poderosas podem ser tão machistas como homens da mesma condição. Basta citar a personagem Meredith Johnson, a ambiciosa executiva de Disclosure, de Michael Crichton — com a ressalva de que o romancista é homem.


É significativo também que se diga que Pimenta cometeu uma arbitrariedade machista ao demitir a namorada que dele se afastara, e não se diga o mesmo por ter ele a promovido duas vezes de repórter a editora quando estavam próximos.


Quem invocou o argumento da “legítima defesa da honra”, que é o supra-sumo do machismo, não foi nenhum dos jornais próximos a Pimenta, mas o seu advogado Antonio Claudio Mariz de Oliveira — uma estratégia desconcertante para alguém com tantos anos de janela. A essa altura, de todo modo, a expressão “linchamento moral” já tinha sido lançada, em um transbordamento de retórica, para caracterizar o modo como a Folha contara a história de Sandra com Pimenta. Serviria também para rebarbar a atitude da defesa.


[Publicado originalmente em 01.09.00 no site Werbo]


[Continua]


Para acompanhar o julgamento pela internet clique em http://ultimainstancia.uol.com.br/index2.html


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