Em entrevista à Época desta semana, o juiz Sérgio Mazina, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, diz que o Congresso, antes de acirrar ainda mais a legislação, deve dizer onde vai colocar mais presos. E raciocina: “Se hoje já temos organizações criminosas perigosíssimas instaladas nos presídios, imagine se aumentarmos o encarceramento”.
No início do primeiro governo de Paulo Hartung no Espírito Santo, a força do crime organizado era tamanha que a administração decidiu não buscar um aumento da arrecadação de impostos, porque isso significaria melhorar a arrecadação do crime organizado capixaba. O crime organizado estava incrustado na administração pública, era sócio do estado.
Isso foi dito em junho de 2003 pelo então secretário de Segurança Pública do estado, Rodney Miranda, num debate promovido pelo Instituto Fernand Braudel. O delegado federal Rodney Miranda é hoje secretário de Defesa Comunitária do município de Caruaru, Pernambuco, onde também foi secretário estadual de Segurança. Em entrevista dada no final de janeiro ao Observatório da Imprensa, Miranda colocou em questão o papel da mídia, sua contribuição para a banalização da violência.
Miranda foi o chefe da operação da Polícia Federal no caso Lunus, que representou na prática a retirada da candidatura à presidência da República da então governadora do Maranhão, Roseana Sarney. O episódio, ocorrido em fevereiro de 2002, foi apresentado como ação do governo FHC para beneficiar o então candidato do PSDB, José Serra, que, com Roseana fora do páreo, acabou sendo o principal adversário do presidente Lula na eleição de outubro. A Polícia Federal encontrou R$ 1,3 milhão de reais no escritório de uma empresa pertencente a Roseana e a seu ex-marido, Jorge Murad. As pilhas de dinheiro foram fotografadas com o estardalhaço habitual. Aqui, Miranda diz que houve apenas uma operação da Polícia Federal em curso havia meses.
Ele critica o conceito que presidiu a formação da Força Nacional de Segurança Pública – ausente, por sinal, em todos os dramáticos episódios que sacodem o Rio de Janeiro desde dezembro.
Eis a entrevista.
Mídia precisa se aprofundar mais nos temas da segurança e da violência
A mídia consegue enxergar os problemas da criminalidade e da violência na sua verdadeira dimensão ou ela segue determinadas pistas dadas pela polícia, pelo discurso oficial?Como o senhor avalia a percepção que a mídia tem, de um modo geral?
Rodney Miranda – Eu avalio negativamente. Eu acho que a mídia, como toda a sociedade, tem que começar a se aprofundar mais nesse tema: segurança, violência. Não é nem só segurança, é violência.
Historicamente, no nosso país, toda vez que acontece alguma situação em que o poder público é cobrado a sociedade exige, como um todo, mais policiais, mais viaturas e mais armas. E, infelizmente, só isso não está resolvendo, senão a questão da segurança pública não seria o tema do século.
Eu acho que a mídia tem um papel muito importante. Primeiro, para cobrar, como deve ser cobrada, a participação da sociedade como um todo e, segundo, para mostrar a situação como ela está, sem subterfúgios.
Força Nacional traz segurança provisória ao Rio, e pode causar insegurança em outros estados
Qual é sua opinião sobre a Força Nacional de Segurança Pública?
R.M. – Eu fico bem tranqüilo, porque já fui Secretário de Segurança de dois estados importantes da Federação, Espírito Santo e Pernambuco, com graves problemas de violência. E eu sempre me posicionei contrário a essa Força Nacional, porque ela é um aparato, um investimento em que você, falando em um jargão popular, cobre a cabeça e descobre os pés.
Eu quero ver como é que vai fazer para colocar seis mil homens no Pan Americano no Rio de Janeiro, porque esses homens vão ter que sair de algum lugar e vão sair das Forças estaduais, de Pernambuco, Brasília, Mato Grosso, Rio Grande do Sul. E, geralmente, são os homens mais preparados que as nossas Forças conseguiram formar ao longo do tempo.
Quer dizer, vai trazer uma segurança provisória, durante a realização dos jogos, para a população e turistas, mas e os outros estados, as outras comunidades, como é que ficam? Há uma série de equívocos. Eu alertei o Secretário Nacional, cheguei a falar, na época, para o atual ministro [Márcio Thomaz Bastos] que há uma série de equívocos na formação dessa Força do jeito que foi feito.
Você junta policiais de situações profissionais e locais diferentes e coloca a mesma tarja neles. Por exemplo: você pega um estado economicamente menos favorecido como Maranhão, Piauí, estados aqui do Nordeste, que pagam salários mais baixos aos seus policiais e junta a outros sob os mesmos uniformes, com as mesmas atribuições, como um policial, por exemplo, do Distrito Federal, onde um soldado recebe quase dois mil reais. Já começa aí a discrepância.
Além disso, você está só retirando gente de um local e colocando em outro, não está resolvendo o problema. Esses 6.500 policiais vão voltar para as suas bases. Como ficará o Rio de Janeiro?
‘Mídia costuma banalizar a violência’
Tratar a questão da violência só na parte policial é um grande equívoco para mim e eu acho que a mídia tem um papel importante, porque ela costuma maximizar essas ações mais violentas, vamos colocar assim: banalizar. Não estou falando de toda a mídia, logicamente, tem aqueles canais específicos, mas acaba-se banalizando a violência.
Eu vi esses dias uma notícia num jornal aqui de Recife que era, na capa, um acidente de trânsito com três pessoas. Uma pessoa saiu pelo vidro, [ficou] pendurada morta, um jornal de grande circulação. Que efeito isso – esse tipo de fotografia, e aí a gente vê também corpos estendidos no chão, crianças jogando bola em volta, esse tipo de manifestação – tem nas crianças, nos nossos jovens, hoje?
Começam a achar que isso é uma coisa normal. Eu acho que a mídia tem uma responsabilidade social muito grande. Eu não estou falando que com isso está aumentando ou diminuindo a violência, mas eu acho que nós poderíamos ter sido poupados de certas cenas que são colocadas no intuito único e exclusivo de aumentar a audiência, mas que acabam trazendo prejuízos bem maiores para a população, isso no meu entendimento.
O crime organizado era sócio do Estado no Espírito Santo
Em junho de 2003, num debate de que o senhor participou, no Instituto Fernand Braudel, em São Paulo, alguém perguntou se não havia como aumentar os recursos para combater o crime organizado. E o senhor falou: “Mas nos primeiros tempos nós não queríamos que a arrecadação do estado crescesse, porque aumentava a arrecadação do crime organizado”. Foi uma coisa muito impressionante. Nunca tinha passado pela minha cabeça que o crime organizado era sócio do Estado.
R.M – Tivemos no Espírito Santo uma situação singular, porque tínhamos um Estado totalmente comprometido com o crime. Era difícil dissociar quem era do bem, quem era do mal. Então, com o nosso trabalho e a força do governador Paulo Hartung, nós conseguimos reverter aquela história, mas até então, naquele início, era muito difícil até porque não tinha nem de onde tirar dinheiro. Ele pegou um estado com 1 bilhão e 200 milhões de reais para pagar. Não é coisa fácil. Despesas empenhadas, despesas feitas, que precisavam ser cumpridas pelo estado.
Que resultados o senhor teve? O Espírito Santo tem muita coisa organizada e até próspera na economia, mas é um dos lugares mais violentos do Brasil.
R.M. – Mas não está mais desse jeito. Em 2002, nós pegamos o Espírito Santo todo com o problema do crime organizado. Das dez cidades brasileira acima de 100 mil habitantes com maior número de homicídios, quatro eram do Espírito Santo, inclusive a primeira, Serra. Está numa reportagem da Época de 2002, eu tenho cópia. Depois vinha a terceira, acho que Cariacica; em quinto lugar, Vila Velha; e acho que em oitavo ou décimo, Vitória.
No ano passado, a Senap [Secretaria Nacional de Segurança Pública] fez uma nova avaliação dessa margem de violência por cidade também, no período referente a 2004/2005, que é o período em que eu estava por lá. O município da Serra estava em 41º lugar, quer dizer, foi uma grande vitória, e as outras tinham saído da lista.
Ali, a questão pior era o homicídio. Eu não sei como está hoje, não tenho nem como avaliar isso até porque tem outros colegas trabalhando. Mas era homicídio, tinha muito problema de crime organizado.
Foi lá que surgiram os esquadrões da morte, foi lá que teve a Scuderie Le Cock, nós acabamos com ela ainda na nossa gestão. Tem um histórico muito grande de morte lá. E nós começamos a combater esses grupos de extermínio, trabalhando também com as prefeituras locais, com a parte social. Conseguimos reverter bem esse quadro.
Em relação ao crime organizado, era uma luta constante. Eu nunca esqueço de uma frase do governador Paulo Hartung. Toda vez que a gente achava que tinha avançado bastante no combate ao crime organizado, ele falava que “a onça está magra, mas não está morta; então, não vamos deixar ela se realimentar, senão engole a gente”. Trabalhávamos com essa consciência.
Eu saí de lá por um problema de interceptação de uma escuta telefônica na Rede Gazeta.
Parece ter sido uma armadilha plantada…
R.M. – Foi. Foi armação do crime organizado, isso eu falo claramente. Em cima da minha pessoa e, reflexamente, do governador também. Eu achei melhor eu sair, até para deixar bem à vontade, eu não quero essa pecha de fazer escuta ilegal, sempre agi na legalidade, queria que as coisas fossem esclarecidas da melhor maneira possível. Eu coloquei o cargo à disposição do governador e segui a minha vida. Tanto que, logo depois, fui convidado para vir para Pernambuco.
Hoje, a própria CPI, eles montaram na Assembléia para fazer carnaval em cima disso, se aproveitar, já acusou a empresa telefônica e me deixou de fora. Eu nunca fui nem sequer citado em nada. O Ministério Público Federal está processando a empresa telefônica, porque o erro foi da empresa: informou errado o número e nós, infelizmente, embarcamos nesse erro. Nós, que eu digo, é Polícia, Judiciário e Ministério Público.
E, eu vou ser bem sincero, segurei um pouco esse negócio por causa da minha equipe. Eu nunca assinei nenhum pedido de interceptação, nem sabia que estavam interceptando tal coisa, mas era minha equipe. Não ia deixar a minha equipe na mão naquela hora, até porque nós tínhamos um grupo muito pequeno e muito coeso combatendo aquela verdadeira máfia que tinha lá.
Origens dos esquadrões da morte
E essa máfia, por que razão lá? O senhor falou que o Esquadrão da Morte começou no Espírito Santo, o meu registro é do então Distrito Federal, em 1953 ou 1954.
R.M. – Não, foi antes. Fenômeno ligado à cafeicultura, toda a migração daqueles coronéis para as cidades, os grandes centros. Foi a partir dali que começaram a surgir esquadrões apoiados pelas forças policiais. Esquadrão da morte sempre tem policial. Se não surgiu, pelo menos foi muito forte lá.
A Scuderie Le Cock foi muito forte, uma instituição de fim social que se colocou rapidamente a serviço do crime, fazendo acertos de conta e outros tipos de atrocidade. Ali surgiu o grande ícone daquela problemática toda, o José Carlos Gratz. Quando ele começou, era ligado ao jogo do bicho do Rio de Janeiro, quer dizer, ele assumiu uma espécie de subsidiária do Espírito Santo. E a partir dali começou a alçar vôos próprios. Ele era ligado, segundo os registros que nós temos lá, ao Capitão Guimarães [Ailton Guimarães Jorge, ex-oficial do Exército integrante do DOI-Codi durante a ditadura, depois banqueiro de bicho, hoje presidente da Liga Independente das Escolas de Samba] aí começou a se envolver, se elegeu deputado e foi envolvendo todo mundo, nomeando todo mundo, aparelhando privadamente o Estado. Nós deixamos o José Carlos Gratz preso, o diretor geral da Assembléia preso e mais uma carrada de presos.
Tivemos uma derrota violentíssima no início do processo, que foi a morte do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, que nós conseguimos desvendar em dois anos, inclusive acusando um juiz, acusando um coronel aposentado, acusando o advogado, que seriam os mandantes do crime. É uma investigação que, na época, não tinha precedentes ainda no país, hoje o pessoal está avançando mais. Foi por conta da instrução desse processo que surgiu o problema da Gazeta.
Qual foi sua trajetória profissional?
R.M. – Eu fui agente da Polícia Civil do Distrito Federal, durante dez anos, e dois anos delegado da Polícia Civil, e sou há quase dez anos delegado da Polícia Federal. Na Polícia Federal, fui chefe do Departamento de Repressão a Entorpecentes. Trabalhei na Coordenação de Repressão ao Crime Organizado de âmbito nacional, hoje, Diretoria de Combate ao Crime Organizado. E tive oportunidade, nesse meio tempo, na Coordenação de Repressão ao Crime Organizado, de participar de algumas ações que ficaram bastante conhecidas no país, como aquela busca no escritório do marido da Roseana Sarney, da prisão de alguns parlamentares, Luiz Estevão, Talvane Albuquerque. Trabalhei no Acre também contra o crime organizado, o Hildebrando Pascoal [ex-coronel PM, ex-deputado federal, acusado de chefiar uma quadrilha que usava moto-serras para eliminar inimigos].
No caso Lunus, uma pilha de dinheiro
No caso Lunus, se diz muito que ali houve intenção de prejudicar, que a polícia foi manobrada pelo José Serra. [A foto de pilhas de dinheiro encontradas no escritório da empresa, em que são sócios a então governadora do Maranhão, Roseana Sarney, e seu ex-marido, Jorge Murad, derrubou a candidatura de Roseana na eleição de 2002 para a presidência da República.]
R.M. – Foi um mandado de busca estritamente dentro da legalidade, dentro de uma programação que a gente vinha pedindo. Era investigação da antiga Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia]. O dinheiro, por exemplo, foi uma sorte nossa, ou falta de sorte deles, a gente não tinha idéia daquele numerário. Tanto que nós realizamos a busca na sexta-feira à tarde. Se soubéssemos daquele dinheiro, tínhamos realizado a busca antes, porque nossa equipe teve que passar praticamente dormindo na Superintendência, no final de semana, cuidando do dinheiro. Na segunda-feira veio uma autorização judicial para poder depositá-lo.
Aquela foto foi uma foto de perícia, nós não a divulgamos. Quem a divulgou foi o Ministério Público Federal. Aquela foto foi o seguinte: se você reparar bem, você conta mais ou menos os maços que dão mais ou menos o valor do dinheiro novo e tem idéia de quanto tinha. E me chame de tudo, menos de ladrão. Nunca ninguém levantou alguma questão de que a gente tinha surrupiado algum daqueles maços de dinheiro.
Que, aliás, voltaram para os proprietários.
R.M. – Exatamente, mas essa é outra história que a gente tem que conversar mais detidamente, há repercussões desses fatos que, sinceramente, não me agradaram, mas o meu papel naquela época eu fiz. Se prejudicou ou não prejudicou a [hoje] senadora, infelizmente, não foi intencional da gente. Eu acho que a ação dela foi muito mais violenta do que propriamente a busca. Para você ter uma idéia, ela é que falou pela primeira vez na Usimar.
A Usimar era um dos objetos da investigação, mas não era o foco principal. Quando ela levantou aquilo e nós fomos recolher os documentos, nós vimos o tamanho do rombo. Com aquele dinheiro, justificou-se termos segurado o dinheiro e teve aquela celeuma toda. Agora, se usaram politicamente isso, à gente não competia mais [fazer nada]. Eu fui acionado, respondi a duas sindicâncias e todas elas foram encerradas, porque não tinham fundamento nenhum.
Até falaram que nós tínhamos viajado com a repórter da Época, mas nós fomos em avião de carreira. Era para termos ido, para você ter uma idéia, dois meses antes. Nós não fomos porque, como o orçamento não tinha sido liberado, nós não tínhamos dinheiro para a passagem.
Do Espírito Santo a Pernambuco
Isso acontece muito com a própria operação da mídia. A pessoa não sabe o que acontece e fica inventando hipóteses: “Foi assim, foi assado”.
R.M. – Na época do ministro José Carlos Dias, eu era chefe ainda na DRE [Delegacia de Repressão a Entorpecentes] e fui convocado pelo Ministério para fazer parte de um embrião do Núcleo de Combate à Impunidade, que foi criado na época do governo Fernando Henrique.
A nossa primeira missão foi auxiliar a governadora Roseana Sarney, no Maranhão, por conta daquele deputado José Gerardo, que andava atropelando gente com ônibus e matava. Ela veio pedir para o ministro, o ministro me indicou, nós fomos lá, eu prendi esse cara, ele está preso até hoje. Ela nos recebeu lá no Palácio, agradeceu o profissionalismo da gente, quer dizer, daquela vez eu não agi politicamente, da outra eu agi, então, esquece. Eu fiquei com a consciência tranqüila.
Depois disso, dessa coisa toda, fui Secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo, durante três anos, do início de 2003 ao final de 2005. Ano passado, fui Secretário de Defesa aqui de Pernambuco e, hoje, estou na Prefeitura de Caruaru como secretário de Segurança Comunitária, que é um questão diferente.
Beira-Mar quis camiseta limpa para dar entrevista coletiva
Como é a sua avaliação dada pela cobertura nos jornais de expressão nacional e nos jornais locais dessa atividade, desse problema e desse trabalho? Problema criado pelo crime organizado e trabalho que foi feito. Como é que o senhor viu isso na mídia?
R.M. – Eu acho fraco. Eu conversei esses tempos sobre esse assunto com o Luis Eduardo Soares [antropólogo e cientista político, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, hoje secretário de Prevenção à Violência em Nova Iguaçu, RJ]. Hoje, a realidade do Rio e São Paulo, até por serem pólos de mídia, pólos de cultura para o país, através de novelas e de outros veículos de divulgação em massa, acaba sendo levada para outros estados, Pernambuco, etc. Aquela intimidação, a corrupção, aquele problema todo que, hoje, infelizmente, principalmente no Rio, envolve a segurança pública. Agora, um pouco menor em São Paulo. E irrita ver aquele negócio de PCC, Comando Vermelho.
Eu acho que a gente está dando muito ibope para essas pessoas. Eu estou falando ibope genericamente. Vou contar uma história: eu cruzei com alguns personagens interessantes dessa vida criminosa nacional. Eu tive uma passagem com o Fernando Beira-Mar, quando ele voltou da Colômbia, se não me engano, quando ele foi ferido a bala.
Despejaram ele lá na Delegacia de Entorpecentes [em Brasília] até ele ir para a Casa de Custódia. “Mas por que ele está aqui e não foi para a Custódia?”, perguntei. “Porque ele vai dar uma coletiva”. Eu falei: “Como é que é?”, “É, ele quer dar uma coletiva”. Eu falei: “Pelo amor de Deus, isso aqui é um bandido – perdoe a expressão –, um vagabundo. Vai dar coletiva? Vai é inspirar essas pessoas menos favorecidas a achar que ele é referência de alguma coisa”. Ele até pediu uma camiseta para a gente porque “ai, a minha está ensangüentada”, não queria aparecer com a camiseta toda ensangüentada.
Ficção centrada na figura do bandido
E você vê: todos os livros, todas os programas se centram na figura do bandido. Nós temos grandes policiais no nosso país, que fizeram trabalhos estupendos e a quem não é dado o verdadeiro valor, feito o verdadeiro registro. Isso porque a lógica da imprensa nacional, capitaneada pela imprensa do Rio e de São Paulo, é de que todo policial é corrupto. E, se você pensar bem, nós temos excelentes profissionais por aí, não só na Polícia Federal, em várias Polícias estaduais, eu tive oportunidade de trabalhar com grandes policiais no Espírito Santo, aqui em Pernambuco, também. Pessoas que se dedicam, corajosas, inteligentes, que, muitas vezes, com poucos meios, chegam a resultados excepcionais.
Eu sei que Estados Unidos não é exemplo para nada, mas lá a figura do policial é enaltecida.
Mas não é só nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra. Tem até personagem literário. Todos esses países têm, Itália, Espanha…
R.M. – O segundo aspecto é a banalização da violência, é mostrar sempre o lado negativo. Eu combato muito isso e aí eu não falo em censura. A minha luta eu considero que é muito mais pela democracia do que as pessoas têm falado aí, pela manutenção da democracia.
Mas eu acho que a própria mídia, através de seus representantes, deveria ter uma espécie de um conselho contra a banalização da violência. Me preocupa muito isso. Uma criança que vê, ao meio-dia, seis horas da tarde, uma morte ao vivo ou então o corpo estendido no chão, vai achar que aquilo é comum. Então, puxar um gatilho, para ele, é uma coisa comum também. Aí soma-se a presença forte de drogas, presença forte de armas. É uma questão muito complexa.
Em Pernambuco, criminalidade pulverizada
Chegamos a Pernambuco. Há muitos registros de extrema violência em Pernambuco. Como foi a sua vivência?
R.M. – Eu achei proveitosa e o feedback que eu tive aqui da sociedade pernambucana foi muito bom. Eu não vim aqui para fazer milagre. Eu vim com a minha experiência do Espírito Santo, ali foi uma grande escola para mim, tanto poder ter trabalhado no estado como poder ter trabalhado com o governador Paulo Hartung, que é um político, um governante, na minha opinião, fora de série. E eu falo com sinceridade, porque não sou de rasgar seda com ninguém: aprendi muito com ele.
Aqui há uma violência muito mais pulverizada. É diferente do Rio de Janeiro, onde nós temos os comandos, as quadrilhas. Aqui, na minha opinião, o aspecto é muito mais social do que, propriamente, criminológico.
Nós tivemos problemas aqui no Sertão, produção de maconha, que é um problema à parte, mas que, nos últimos anos, até o trabalho que tem sido feito pelo governo estadual, junto com a Polícia Federal, conseguiu suprimir bastante.
Eu estive pela primeira vez em Pernambuco em 1999 e fui direto para o Sertão, naquelas operações contra a produção de maconha, como delegado federal. E lá, nós, a Polícia Federal, tínhamos que andar em comboio pelas estradas, com preocupação de sofrer atentado, assalto, esse tipo de coisa. Imagina a população.
Hoje, a realidade é outra. Graças a umas boas iniciativas do governo federal, hoje já não tem o nível de tensão, de violência que nós tínhamos antigamente. A maconha continua sendo um problema? Continua, até porque o governo, o poder público não conseguiu ainda substituir a cultura da maconha, que é uma cultura tão lucrativa e fácil. Iniciativa de alho, cebola, não alcança nem de perto a lucratividade que a maconha dá para aquelas pessoas, muitas vezes sem nenhum tipo de perspectiva.
E eles, entre morrer de fome e se arriscar, se arriscam. Logicamente, tem um mercado atacadista e nós começamos a investigar esse tipo de pessoa, não são aqueles pobres coitados… Eles têm algum tipo de incentivo para fazer, tem alguém que inclusive fornece insumos para eles; e esse tipo de gente é que a gente começou a, literalmente, caçar aqui em Pernambuco.
A gangorra da taxa de homicídios
Algumas boas vitórias: nos primeiros meses de governo houve uma redução até bem expressiva nos homicídios. Nós pegamos uma média de quatorze homicídios por dia, em Pernambuco. Chegamos a dez, nove, nos primeiros meses do governo. Depois, deu uma outra escapada e nós fechamos com doze, em média. Hoje, segundo me informaram, nós estamos em dezesseis, quer dizer, o negócio ainda está complicadíssimo. São doze a quinze vidas por dia, geralmente vidas de jovens. Estão ocorrendo verdadeiros genocídios.
É um problema difícil de se resolver, que tem que ser enfrentado pela população, como um todo, mas a nossa mensagem foi bem recebida. Eu tive muito apoio na mídia, da sociedade aqui, tive muito apoio do governo, do governador que me chamou para cá, [José] Mendonça Filho, só que, por uma questão de urna, acabou-se perdendo a eleição e o novo governo está tentando enfrentar esse problema, o governador Eduardo Campos. E eu, como radicado aqui em Pernambuco, quero que eles se dêem bem.
Agora o senhor está em Caruaru. Qual é a missão aí?
R.M. – Prevenção. Eu não vim aqui para prender ninguém, investigar ninguém. Eu vim aqui para trabalhar com um programa de prevenção da violência. Eu quero tentar, de alguma forma, diminuir a demanda para as Polícias, para a Justiça, para o Ministério Público, usando tanto a experiência que eu tive no Espírito Santo e aqui em Pernambuco quanto as experiências que eu conheci com algumas autoridades do país e até do mundo. Diadema (SP), por exemplo.
Tentar fazer um pouco daquilo que foi feito em outros lugares. Logicamente, adaptado às condições aqui de Caruaru. Eu também fui muito bem recebido e estou iniciando um trabalho que me deixa muito animado, que dê, a médio e longo prazo, bons resultados aqui para a cidade. É uma cidade boa, uma cidade média, trezentos e poucos mil habitantes, mas com uma economia muito forte. Eu tenho conversado muito com o pessoal. Nós estamos a cento e poucos quilômetros da região metropolitana, pista dupla, e a economia cresce muito. É a principal cidade aqui do interior de Pernambuco, fora a Região Metropolitana. Então, a gente não pode deixar chegar aos níveis a que chegou lá. Depois, consertar isso é muito mais difícil. Precisamos trabalhar na plataforma da prevenção. Estou bem animado, mesmo.
Violência atrai muita audiência, soluções não atraem
Voltemos ao trabalho da mídia.
R.M. – O que dá audiência é a violência e não as soluções. Eu conversava com a ex-secretária de Ação Social do governo do estado, que trabalhou junto comigo, e ela falou isso: “Infelizmente, nós estamos fazendo há muito tempo vários trabalhos maravilhosos na área social, na área educacional, mas não isso é reconhecido”. Porque nós pensamos muito no imediato. Imediato, para nós, é polícia. A hora que aperta o carro, a gente chama a polícia. Não sabe nem se é questão de polícia, mas já chama a polícia. E eu estou falando isso como um policial de vinte anos de estrada e vinte anos na rua.
E é verdade que nos jornais de hoje [final de janeiro], para dar um exemplo, no Globo, uma ação bem-sucedida em cima de uma conexão libanesa da droga ganhou uma chamadinha pequenininha, e a viúva do ganhador da Mega Sena, um crime que vai acontecer sempre, na Bíblia já tinha e vai ter daqui a cem mil anos, ganha um destaque bem maior, porque a viuvinha é bonitinha, vai chamar a atenção da galera.
R.M. – Ou muda esse foco, ou a tendência é nós estimularmos outras pessoas a entrarem no crime. O Fernandinho Beira-Mar ser tratado como poderoso, um m… daquele – eu falo isso porque já falei na cara dele isso…
Mas ele é rico…
R.M. – Ele é rico, poderoso. E ficam mostrando gravação dele mandando matar e rindo. Pelo amor de Deus. E aí um jovem, que já está com pouca perspectiva social, já tem horizontes limiitados, vê uma possibilidade dessas, ele mergulha.
O que eles não estão vendo é que 90% dos homicídios hoje são de jovens. A nossa população prisional não envelhece. Pode ver, é só de menino. É de 14 a 26 anos. Isso no Brasil, não é só aqui em Pernambuco, não.
E tem um outro fenômeno gozado. Ouvi de uma pessoa, recentemente: “Quem quer ficar vivo, acaba indo em cana, porque na rua não dura, não”. Em cana você tem boas condições. Se você for rico, você tem condições para fazer várias coisas, continuar dirigindo a quadrilha, por exemplo.
R.M. – E aí você vê, a gente vai enaltecendo esses comandos, pena não sei o quê, sistema não sei o quê. Qual é a alternativa de um menino de 18 anos que cai num furto, num roubo? É chegar e procurar um comando desses para procurar proteção…
A miséria do sistema prisional
Recentemente, um jovem de classe média foi preso com não sei quanto de maconha, e falou para a mãe: “Eu preciso de grana de qualquer jeito aqui dentro para dar para os caras do PCC, senão eu estou frito”.
R.M. – Exatamente, e é por aí mesmo, infelizmente. O sistema prisional nosso é uma conversa à parte. A gente passa duas, três horas conversando e eu falei muito isso aqui: não tem como a gente resolver o problema de segurança pública se não der um jeito de resolve o problema do sistema prisional, porque hoje os sistemas prisionais só estão servindo para acabar com o resto de auto-estima das pessoas que entram lá e para torná-los muito mais perigosos do que quando entraram. A nossa culpa, como sociedade, é de ter considerado que somente empilhando essas pessoas nesse depósito de presos mais tempo estava resolvido o problema. Desde que eles saiam do nosso meio, está resolvido. A gente esqueceu que eles estão voltando, eles voltam e, quando eles voltam, voltam muito mais perigosos, muito mais letais.
Eu até falo, proporcionalmente a violência não tem crescido tanto. O que tem crescido é a audácia, a letalidade dos criminosos. Antes, eles não chegavam na nossa porta, hoje estão chegando. Ontem, eles não entravam na casa, agora, estão entrando.
É complicado, mas não veja isso como um desabafo, um desânimo. Eu ainda acredito muito que a situação é reversível e continuo, na minha pequenez, trabalhando, alertando e tentando melhorar de alguma forma, até porque eu também tenho filhos e minha obrigação é deixar um mundo melhor para eles.
(Transcrição de Raiana Ribeiro.)