O título, em si, já é excepcional para os padrões do orgulhoso país:
”O mundo está certo; nós estamos errados”.
No original, as palavras estão em inglês – e o país onde apareceram são os presunçosos Estados Unidos. Ou, mais precisamente, apareceram na revista semanal Sports Illustrated, do grupo Time-Warner, a maior do gênero na América, com tiragem de 2,7 milhões de exemplares.
O autor é o colunista Steve Rushin. Como já deu para perceber pelo título, ele não é de medir palavras. Tanto que termina seu artigo com o dedo no nariz do leitor:
”Se depois de ver tudo isso você ainda não gostar de futebol, você não gosta de esporte. Apenas pensa que gosta.”
O “tudo isso” são os diversos vídeos disponíveis na internet que ele descreve para demonstrar o que só os americanos ignoram – que o futebol é uma modalidade absolutamente superior de esporte.
Mais do que de esporte: de uma arte em que a bola é o meio, o gol o fim, e o corpo humano a sua forma sublime de expressão.
A cada quatro anos é a mesma coisa: sempre vem alguém escrever sobre a singular incapacidade americana de praticar e curtir essa arte. Mas não na grande mídia americana. E muito menos com a contundência de um Rushin.
[Infelizmente, o seu texto só está disponível na internet para assinantes da Sports Illustrated.]
Os Estados Unidos produzem a mais consumida cultura de massa do mundo – pode-se não gostar do gênero, mas não se pode negar que desde a invenção do gramofone e do cinema eles são os seus campeões mundiais.
Pois nem o futebol, nem o maior espetáculo da Terra – a Copa do Mundo – dizem qualquer coisa para a esmagadora maioria dos habitantes desse país que criou e globalizou a indústria do entretenimento.
Para Steve Rushin, que combina admiravelmente crítica social, intenção de educar e informação convincente – nos seus exemplos sobre a beleza ímpar do futebol –, a atitude dos americanos em relação à Copa do Mundo “ilumina muitos de nossos atributos menos elogiáveis como nação, a começar por uma falta de curiosidade sobre o resto do mundo de tirar o folego”.
E aí ele solta os cachorros: 2/3 dos americanos entre 18 e 24 anos são incapazes de localizar o Iraque num mapa; os americanos não gostam de reconhecer invenções estrangeiras [ele poderia ter dito que se dão a paternidade de algumas delas, como a de Alberto dos Santos-Dumont, mas já seria demais] e são portadores de “outro viés insidioso”:
O preconceito – que sabidamente denota uma insegurança cultural do homem americano típico sobre a própria masculinidade – contra esportistas que usam rabo-de-cavalo, a menos, ironiza Rushin, que se chamem Chris Evert, a maior tenista da história dos EUA.
Roberto Baggio, depois David Beckham, depois Ronaldinho, enumera o colunista, antes de desafiar o leitor a citar um único atleta americano que tivesse tido sucesso usando o cabelo como eles – “com a exceção de Secretariat”, brinca, lembrando um dos mais extraordinários cavalos de corrida de todos os tempos.
Na mesma veia gozadora, ele cutuca os americanos pelo fato de nenhum dos seus astros de basquete e do que ali passa por futebol terem nomes tão sonoros como Antonio Lebo-Lebo e Arsenio Love (da seleção de Angola), Boubacar Barry (Costa do Marfim), Junior Agogo (Gana) e o nosso Kaká.
Falando sério, mas sempre ferino, Rushin se pergunta se a aversão americana ao futebol que eles chamam soccer não teria menos a ver com os cartões amarelos ou vermelhos do jogo do que com o cartão verde – a cor do documento que dá aos estrangeiros o direito de residência no país.
Ou seja, há um fundo de xenofobia em campo.
Partindo disso, o colunista faz um apelo: “Abramos, se não nossas fronteiras, as nossas cabeças.”
Pode esperar sentado. Ou, como dizem os gringos, até o inferno congelar.
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