Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que ficar de olho na eleição alemã

Os jornais brasileiros de primeira linha deram conta do recado ao destrinchar para quem vive deste lado do mundo as questões em jogo na eleição alemã de hoje.

O título da principal das cinco matérias da Folha sobre o assunto vai direto ao ponto: “Alemães decidem modelo de Estado na urna”.

Precisamente por isso vale a pena saber o que pode dar na Teutônia depois que forem às urnas aqueles dos 60 milhões de eleitores aptos a votar (numa população de 82 milhões).

“Modelo de Estado” é o que, no fundo, mais interessa a este Brasil campeão mundial da desigualdade social e detentor de índices de pobreza que deviam ser incompatíveis com o grau de modernização da economia.

Como é que começava mesmo o programa do então candidato presidencial Fernando Henrique, em 1994? “O Brasil não é um país sub-desenvolvido. É um país injusto.”

Em matéria de iniquidade social a distância entre a Terra e Marte é menor do que entre o Brasil e a Alemanha.

O efeito do programa de governo da direitista Angela Merkel, se ela desempregar o primeiro-ministro de centro-esquerda Gerhard Schröder – e tiver maioria para fazer o que promete – será encurtar um tantinho essa distância sideral.

Se é possível falar em capitalismo com face humana, nenhum país do porte da Alemanha, a terceira economia do planeta, conseguiu chegar perto disso. Em tempo algum.

A Alemanha é inacreditável. Para repetir um lugar-comum, deu ao mundo Kant, Goethe, Beethoven e muitíssimo mais. Depois deu Auschwitz. E depois de Auschwitz deu uma sociedade progressista como pouquíssimas.

Quando Lula falava em câmaras setoriais para acertar os interesses do capital e do trabalho, sob a mediação do Estado, a sua referência era a concertação, ou co-determinação – o formidável pacto econômico e social entre os sindicatos (de patrões e empregados) e o poder público que fez da Alemanha um dos lugares mais decentes para se viver.

Esse Éden, com a maior e mais segura rede de proteção social que já se viu, começou a fazer água depois da queda do Muro, quando a banda germânica ocidental incorporou a oriental, a um custo astronômico para o Estado.

Reformas “orientadas para o mercado”

Isso tudo mundo sabe. Mas o que poucos lembram é que esse mesmo Estado começou a acumular déficits colossais também porque financiou o Kapital do Oeste para se apropriar do patrimônio econômico do Leste, a preços de fim de feira. Como será que se diz lambança em alemão?

O fim do socialismo na outra margem do Elba fez o resto. Empresas e mais empresas alemãs mudaram as suas fábricas para a Polônia, do lado de lá do rio, ou para a República Checa, a fim de pagar impostos menos “escandinavos”.

Resultado: mais desempregados para o Estado do Bem-Estar Social sustentar, e menos empregados para ajudar a sustentar com os seus impostos essa maravilha.

Desde então, funcionando cada vez com mais intensidade, o aparato de produção ideológica do neoliberalismo, em coro com os interesses da finança globalizada – que abomina o gasto público com benefícios sociais e a regulamentação das relações de trabalho – encheu a cabeça da alemãozada com o refrão “reformas, reformas, reformas”.

Naturalmente, reformas “orientadas para o mercado”, como dizem os economistas. Não é à toa que Frau Merkel, a reformista da direita, é chamada a “Thatcher alemã”.

Isso não quer dizer que a Alemanha não viva dias difíceis. O país cresceu nos últimos 12 meses 0,6%, uma quirera perto dos tempos do Wunderwirtschaft, o milagre econômico do pós-guerra que parecia não acabar nunca. E o desemprego já passa de 11%, o segundo mais alto do Primeiro Mundo, depois da pequena Bélgica.

Ainda assim, o pessoal à esquerda do centrista e reformador moderado Schröder acusa a direita de superestimar a crise e distorcer as suas causas.

Um dirigente do SPD (o partido social-democrata alemão) lembrou dias atrás a um repórter do Financial Times de Londres que o maior exportador do mundo não é a China: continua sendo a Alemanha, que vende algo como US$ 900 bilhões por ano – e ostenta um saldo comercial da ordem de US$ 200 bi, também o maior do mundo.

Pode ser coincidência, pode não ser: mas na semana que passou esse dado mal apareceu na catarata de matérias da grande imprensa estrangeira sobre as mazelas da economia alemã.

A moral da história, vista daqui, é a seguinte: à parte qualquer outro fator, nestes tempos devastadores do chamado turbocapitalismo e da chamada globalização assimétrica – eufemismos para enriquecimento dos ricos e empobrecimento dos pobres – quanto mais golpes sofrer o Estado do Bem-Estar Social, maiores serão as chances de se perpetuar o Estado do Mal-Estar Social em países como o Brasil.

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