Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que só agora Denise falou?

Jornalista que acha que notícia é muito mais do que o trivial variado do “Fulano de Tal disse ontem que” – o jornalismo declaratório, na depreciativa expressão de Alberto Dines –, decerto achará também que quanto mais importante for o dito, pela autoria ou pelo conteúdo, mais urgente é tentar apurar o porquê da coisa: os motivos que levaram o(a) eventualmente ilustre declarante a dizer o que disse, nas circunstâncias em que o disse.


O gancho para essa observação trivial, mas que nem por isso se traduz em procedimentos rotineiros nas redações, é evidentemente a entrevista exclusiva ao Estado de S.Paulo da ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o órgão regulatório do setor, Denise Abreu.


Ele acusou a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, e a sua sub Erenice Guerra de a pressionarem para que não criasse obstáculos potenciais à venda da Varig para a sua antiga subsidiária VarigLog, em julho de 2006. Toda a mídia que conta ecoou.


Meio ano antes, quando a porta-bandeira da aviação comercial brasileira já entrara em parafuso, sob o peso de R$ 7 bilhões de dívidas impagáveis, a VarigLog foi comprada por um fundo americano de investimentos, o Matlin Patterson, em parceria com três brasileiros.


Havia fortes suspeitas – até hoje não esclarecidas – de que os brasileiros poderiam ser apenas laranjas ou testas-de-ferro do fundo, representado pelo executivo Lap Chan.


Eles seriam uma espécie de figurantes em cena para que não se dissesse que era externo todo o capital da empresa que se criou no Brasil para comprar a VarigLog, chamada Volo. Pela lei, investidores estrangeiros não podem ter mais de 20% de uma companhia aérea nacional.


Pois bem. O que Denise e outros diretores da Anac – mas não o seu presidente Milton Zanuazzi – queriam era exigir dos três brasileiros prova de origem do dinheiro com que entraram na sociedade. Sem isso, a agência reguladora não poderia aprovar a venda da VarigLog para o fundo americano, nem autorizar a compra da Varig pela VarigLog.


Denise Abreu contou ao Estado que Dilma como que mandou deixar para lá. A ministra teria argumentado que não é função da Anac, mas do Banco Central e da Receita Federal, apurar se o dinheiro da trinca era legítimo. Teria argumentado também que, de mais a mais, isso poderia dar em nada “porque era muito comum as pessoas no Brasil sonegarem imposto”, segundo a citação de Denise.


A sua acusação foi corroborada por dois outros ex-diretores da Anac. Numa entrevista, Dilma negou repetidamente a versão de Denise.


[Da série “Vejam como são as coisas”. Segundo a matéria da Folha foram oito desmentidos. Segundo a do Estado foram seis. Editorial deste último, no entanto, falou em sete, o que lhe permitiu dizer adiante que sete é “o número do mentiroso”.]


Não há a menor dúvida de que o governo queria que a Varig fosse vendida o quanto antes naquele ano de eleições nacionais e Copa do Mundo. E são veementes, como se diz nos tribunais, os indícios de que o governo usou de seus recursos de poder para conseguir o que queria – do modo como fosse possível.


Para o Estado, tamanho interesse vinha do fato de que o advogado dos três brasileiros era o compadre e velho amigo do presidente Lula, Roberto Teixeira. Um desses sócios disse ao jornal que pagou a Teixeira US$ 5 milhões “para trazer resultados” e acrescentou: “Sua influência foi 100% decisiva”. O advogado negou ter recebido essa bolada toda e anunciou que iria processar o ex-cliente [e a ex-diretora Denise, que também o mencionou]


Hoje, enfim, o Blog do Josias informa que o presidente Lula se disse “intrigado” com a entrevista de Denise. Ele teria dito também que acha “curioso” que acusações à ministra Dilma, em testes para ser a candidata do governo à sucessão, partam, invariavelmente, “de pessoas ligadas ao PT”.


Denise foi, ou ainda é, ligada ao ex-ministro José Dirceu, com quem trabalhou na Casa Civil antes de se tornar diretora da Anac.


Com isso, volta-se ao ponto de partida: o que a levou a falar o que falou – verdades, meias-verdades ou mentiras, nesse ponto tanto faz – na hora em que falou e ao jornal a que falou?


Como qualquer órgão de mídia nas mesmas circunstâncias, o Estado tem o direito de não contar os bastidores da entrevista. [Mas todos eles deviam pensar duas vezes antes de falar em “transparência”]. O leitor, portanto, não tem como saber quem ligou o ventilador: foi Denise quem ofereceu a entrevista ao jornal, ou foi o jornal – tendo tido motivos para desconfiar que há algo no ar, além dos aviões de carreira – que a procurou?


Em qualquer hipótese, os entrevistadores tinham o dever de lhe perguntar por que ela não disse o que estava dizendo em agosto do ano passado, quando depôs na CPI do Apagão Aéreo e a palavra Dilma em nenhum momento aflorou aos seus lábios [com perdão pelo pedantismo].


Feita a pergunta, ela poderia ter “desconversado”, como se lê a toda hora nos jornais quando alguém tira o corpo de uma questão desconfortável. Ainda assim, fosse qual fosse a resposta, o leitor teria sido implicitamente alertado para o “aí tem” dessa história. E “aí tem”, por sinal, na esmagadora maioria das histórias que mexem com poder, prestígio e riqueza.


Mas ainda é tempo. Se não o Estado, outro jornal, site ou blog noticioso pode fazer a pergunta até aqui, digamos, esquecida.