O texto a seguir foi elaborado por Rogério Christofoletti, do Monitor de Mídia, da Universidade do Vale do Itajaí, como contribuição aos debates durante o Colóquio Latino Americano sobre Observação de Meios:
El texto que publicamos abajo fue escrito por Rogerio Christofoletti, del Monitor de Medios, de la Universidad del Valle del Rio Itajai (sur de Brasil) como aporte a los debates en el Coloquio Latinoameriano sobre Observación de Medios:
Em 2003, durante o 26º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação em Minas Gerais, manifestei preocupação com o que chamei de impasses a uma efetiva crítica de mídia no Brasil. Em minha apresentação, listei dez problemas que obstruem não apenas a vigência ampla e influente de um conjunto de dispositivos deste tipo no país, mas a emergência de uma cultura que sustente, promova e ajude a consolidar esse espírito.
Meu entendimento era de que o cenário da comunicação no Brasil não dispõe de uma cultura de crítica efetiva dos media. Prova disso seriam as poucas iniciativas existentes no mercado, indo dos raros ombudsmen a escassos esforços de autocrítica. Essa condição seria marcada, então, por um conjunto de aspectos que funcionam como empecilhos, coibindo a disseminação de práticas reais e tornando pouco operativos os mecanismos existentes.
Os impasses estariam incrustados na própria estruturação dos meios de comunicação como sistema de informação, com fortes raízes na cultura nacional de consumo desses produtos. Entre as percepções primeiras, eu mencionava em 2003 que esses problemas nasciam (e se alimentavam) na frágil fiscalização do Estado, na obsolescência e ambigüidade de algumas leis, em vícios corporativos do mercado e na insuficiência dos dispositivos reguladores da sociedade.
Mas se faz necessário citar quais eram esses dez impasses: Concentração e oligopólio; Propriedade cruzada e domínio de conteúdo; Coronelismo eletrônico; Dial restrito; Concessões infinitas; Lei de imprensa caduca; Inoperância dos conselhos de comunicação; Arcaísmo no empresariado; Categoria não pode cassar profissionais faltosos e Autismo na sociedade.
De 2003 até hoje, esses dez aspectos sofreram ligeiras alterações, nada substancial na direção de uma verdadeira transformação do cenário. Muito pelo contrário, alguns eventos só reforçaram o caráter inibitório, impeditivo para a expansão de uma cultura de crítica de mídia no Brasil.
I – Entraves a uma cultura de crítica de mídia
A Concentração e Oligopólio só aumentam. O caso mais ruidoso aconteceu mês passado em Santa Catarina, estado onde resido. O poderoso Grupo RBS – que já reunia 26 emissoras de televisão aberta, duas estações locais de TV, dois portais na internet, 26 emissoras de rádio, editora, parques gráficos, gravadora e empresas em outros ramos – comprou o concorrente A Notícia, de Joinville, e lançou o Hora de Santa Catarina, na capital Florianópolis, pulando de seis para oito jornais diários. Com esses dois lances, o conglomerado não apenas anula a concorrência no interior do estado como também fortalece agressivamente suas posições na capital do estado, fustigando concorrentes menores como O Estado, o mais tradicional diário catarinense em situação pré-falimentar, e Notícias do Dia, título modesto e lançado há poucos anos.
Em escala nacional, o oligopólio e a concentração do mercado midiático são tônicas que se mantêm em todas as regiões e quase sempre sob os mesmos formatos: são grandes conglomerados regionais de meios de comunicação, administrados por famílias influentes financeira e politicamente. Calcula-se que, hoje, sete grupos controlem 80% de tudo o que é visto, ouvido e lido nos media brasileiros:
A família Marinho detém a líder isolada na TV aberta (Rede Globo), o terceiro jornal em tiragem no país (O Globo), a maior operadora e distribuidora de TV a cabo (NET), um dos portais mais acessados da internet (Globo.com), uma importante produtora e distribuidora de cinema (Globofilmes), dezenas de emissoras de rádio FM e AM (incluindo a rede CBN) e um sistema de produção de canais para TV a Cabo (GloboSat).
A família Civita tem a maior editora de revistas, fascículos e periódicos do país, com ramificações na América Latina (Abril), uma divisão de distribuição e produção de vídeos (Abril Vídeo), uma emissora de televisão (MTV), uma operadora do sistema de TV a cabo (TVA), além de participação na DirecTV. São sócios do maior portal de conteúdo de língua não-inglesa do mundo (UOL).
A família Abravanel controla a segunda rede de emissoras de televisão do país (SBT), mantém parcerias com produtoras e estúdios de cinema multinacionais, além de ter empreendimentos em outros setores da economia.
Os Frias possuem o jornal mais lido do país (Folha de S.Paulo), um instituto de pesquisas de opinião pública (DataFolha), outros jornais menores, parte de um dos maiores provedores de acesso e informação do mundo (UOL), uma agência de notícias (Agência Folha), uma editora (a PubliFolha) e parte de um dos mais influentes jornais de economia (Valor Econômico), em parceria com O Globo.
A Igreja Universal é proprietária da terceira maior rede de TV do país (Record) e de outras emissoras menores, como a Rede Mulher e a Rede Família. Edita o maior jornal evangélico do mundo com tiragem na casa dos dois milhões de exemplares por semana (a Folha Universal), seis periódicos no exterior (Tribuna Universal, em Portugal, Stop Suffering, na África do Sul, El Universal, na Argentina, Folha Universal, em Moçambique, Universal, na Venezuela, e Arretez de Suffrir, na Costa do Marfim), uma revista nacional (Plenitude, 223 mil exemplares), parque gráfico, editora de livros, portal na internet (Portal Arca Universal), gravadora e uma cadeia de 30 emissoras de rádio (a Rede Aleluia).
A família Saad controla a Rede Bandeirantes, as emissoras da Rádio Bandeirantes AM e FM e detém ainda a Play TV (ex-Canal 21), de grande penetração e alcance na capital paulista.
Os Mesquitas são proprietários da segunda maior circulação em jornais no país (O Estado de S.Paulo), dos tradicionais Jornal da Tarde e Rádio Eldorado FM, da Agência Estado e de uma emissora de televisão no Maranhão.
A presença tentacular desses grupos no cotidiano informativo e de entretenimento dos brasileiros configura uma verdadeira onipresença. A envergadura de certos grupos impressiona e muito se assemelha às cifras de mercados nacionais. No Brasil, existem 41,1 milhões de domicílios com aparelhos de TV, número superior aos lares com refrigeradores. Em média, há 1,25 televisor por domicílio, e o brasileiro fica quase 3 horas por dia em frente ao aparelho, de segunda a sábado, conforme apurou o DataFolha em setembro de 2000, quando do cinqüentenário da TV no país[1].
Em 1999, números das próprias emissoras deram conta de que o faturamento bruto da TV de sinal aberto foi de R$ 4,4 bilhões.
A concentração no negócio da mídia dificulta a entrada de novas empresas, estilos e conteúdos no mercado. Pior: padroniza o noticiário e pasteuriza o entretenimento. Poderosos, os controladores são avessos à crítica e à contestação de seus procedimentos. No caso das emissoras de rádio e TV, que dependem de concessões públicas para operar, o caso é ainda pior, já que a condição pública, os compromissos decorrentes da permissão de exploração e as contrapartidas sociais são simplesmente deixados de lado.
O sistema permite a propriedade cruzada, que intensifica o domínio do conteúdo. Ao contrário de outros países, o Brasil tem uma legislação confusa, cheia de brechas que permitem a ocorrência do fenômeno da propriedade cruzada: um mesmo grupo controlar empresas do ramo impresso, eletrônico ou de radiodifusão. Isso faz com que o noticiário produzido em um veículo seja apenas reproduzido em outro da mesma cadeia, muitas vezes, ignorando as características do próprio meio e os aspectos locais e regionais. Possibilita ainda que opiniões, valores, símbolos e versões de fatos que interessem aos grupos empresariais detentores sejam distribuídos de maneira perene e uniforme por diversas vias, dando mais força à difusão de tais idéias, aumentando seu alcance e sua penetração.
O detalhamento da ramificação dos grupos feito acima é uma amostra da capilarização no mercado, e certifica a existência de um estado permissivo, complacente com uma situação de baixa concorrência, de loteamento do mercado.
A propriedade cruzada é um catalisador do processo de concentração, facilitando a expansão desses negócios e dando ao consumidor uma impressão de poderio financeiro, onipresença e credibilidade informativa. É uma estratégia de multiocupação de espaços no imaginário do cidadão, uma tentativa de preenchimento dos tempos do consumidor de informação e entretenimento.
Aliado ao oligopólio e à propriedade cruzada está o que se convencionou chamar por aqui de Coronelismo Eletrônico, uma modalidade de domínio, domesticação e opressão política.
A expressão é tipicamente brasileira e surgiu com base na existência de chefes de poder regional apelidados de coronéis no nordeste do país. Se em meados do século XX esses coronéis influenciavam massas de trabalhadores rurais a votar em candidatos de seus interesses, atualmente este poder se exerce pela detenção de emissoras de rádio e televisão que ajudam na manutenção da ordem e do esperado.
Em 2001, levantamento da Folha de S.Paulo revelou que 24% das empresas de radiodifusão brasileiras são de políticos. Significa dizer que a cada quatro emissoras, uma está sob as asas de algum detentor de mandato. Um estudo do ano passado[2] indica que um em cada dez deputados federais é proprietário direto de alguma emissora, o que significa dizer que as empresas estão em seus próprios nomes. São pelo menos 50 deputados e outros 25 senadores – direta ou indiretamente – que controlam alguma rádio ou TV, o que fere frontalmente o artigo 54 da Constituição Federal que impede parlamentares a serem “proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público”.
O fato é que a distribuição indica que as concessões foram historicamente usadas como moeda de barganha política entre os partidos que davam sustentação aos governos no Poder Legislativo. E em algumas regiões do país, o domínio político dos meios de comunicação é condição fundamental para manter a hegemonia de grupos e de oligarquias. Isso se dá com nitidez no Norte e Nordeste:
Na Bahia, Antonio Carlos Magalhões tem emissoras de televisão que retransmitem a programação da Rede Globo, estações de rádio e jornais na capital e no interior do estado.
No Ceará, Tasso Jereissati detém participação majoritária na afiliada à Rede Bandeirantes.
Em Alagoas, os Collor de Mello têm a retransmissora da Globo, rádios em Maceió e interior e o maior jornal.
No Pará, Jader Barbalho retransmite a programação da Band em sua emissora de TV, além de controlar jornais e rádios.
Em Sergipe, Albano Franco domina o cenário mediático.
No Maranhão, a situação mais grave: Edison Lobão tem nas mãos a afiliada do SBT, jornais e emissoras de rádio. Os Sarney detêm o maior jornal, além da TV Mirante (Globo) e mais 38 concessões de rádio e TV em cinco cidades.
Diretamente ligado à farra das concessões, há outros dois aspectos que impedem a disseminação de uma cultura de crítica de mídia no Brasil: restrições no dial e concessões praticamente infinitas. A concentração dos meios e quase nenhuma brecha para a entrada de novos grupos na exploração do negócio da comunicação tem outro fator restritivo no modelo nacional: a inexistência de uma política para as rádios livres e comunitárias. Debilidades na legislação, ineficiência na fiscalização dos padrões técnicos e dos conteúdos, e lobbies de grandes e médias emissoras, transformam o dial num terreno reservado quase que exclusivamente para as rádios comerciais.
Por outro lado, embora as concessões de radiodifusão sejam figuras de caráter público, com prazos definidos para a exploração e com contrapartidas sociais de seus beneficiários, a sua cassação é um evento raríssimo no sistema nacional, quase inexistente. A regra geral aplicada é a renovação automática das concessões para as emissoras, gerando períodos infinitos de domínio de algumas redes no espaço audiovisual. A legislação contribui para este estado de coisas, bem como a ineficiência do estado na fiscalização e controle dos concessionários. Não há cobrança governamental pela qualidade da produção e do conteúdo. A sociedade pouco se manifesta sobre isso.
Do ponto de vista institucional, a própria Justiça fica de mãos atadas. Dois impasses de sua ordem atravancam não apenas as cortes, mas também cerceiam os profissionais da comunicação e outros setores da sociedade. Um se personifica numa lei de imprensa arcaica e obsoleta e outro na impossibilidade de cassação de registro de profissionais que cometem crimes de imprensa ou graves deslizes éticos. A chamada Lei de Imprensa data de 1967 e já não dá mais conta da evolução tecnológica do setor e nem do desenvolvimento da própria sociedade. Tanto é que muitos advogados acionam mais o Código Penal – no que tange os crimes de opinião – do que propriamente esta lei.
Também resistentes a uma discussão mais ampla do papel dos meios de comunicação e da qualidade dos conteúdos veiculados, os profissionais da área[1] – mesmo que quisessem – têm limitações para regulação do próprio mercado de trabalho. Diante dessa porosidade, chegam às redações, estúdios e bastidores toda sorte de indivíduos, muitas vezes desabilitados a exercer a profissão e sem qualquer formação deontológica.
Diferente dos médicos, engenheiros e advogados, os jornalistas no Brasil não podem cassar os registros dos maus profissionais, zelando assim pela qualidade mínima dos que estão atuando no mercado. Quem fornece os registros é o Ministério do Trabalho, instância que pode também suspendê-los, fato raro. A categoria tenta reverter esta situação passando a prerrogativa a um órgão classista legítimo, como a Ordem dos Advogados do Brasil para os causídicos. Para isso, foi apresentado em 2004 no Congresso Nacional um projeto de lei para criação do Conselho Federal de Jornalismo, dispositivo polêmico que acabou rechaçado. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) – principal articuladora do projeto – promete retomar essa bandeira em 2007.
Outros três aspectos colocam-se como entraves à disseminação de uma efetiva crítica de mídia no Brasil: a inoperância dos conselhos de comunicação[2], o conservadorismo do empresariado do setor de mídia e uma espécie de autismo da sociedade frente a sua relação com a comunicação.
Mas nem tudo é espinho. Repeti meus passos dados em 2003 quando da indicação de impasses a uma efetiva crítica de mídia no Brasil. Refiz esse percurso, acrescendo de novos episódios e dados mais atualizados. O que se percebe é que os entraves continuam firmes e espalhados em diversas camadas sociais. Mas apesar disso, há iniciativas que insistem romper com esses paradigmas derrotistas.
II – A proposta de uma rede nacional de observatórios[3]
Um paradoxo assombra aqueles que se preocupam com a ética no jornalismo: embora seja um campo de atuação maciçamente notório, o público em geral pouco sabe do funcionamento cotidiano do jornalismo. Evidentemente, essa contradição contribui para um cenário que pouco acrescenta e esclarece sobre as bases que sustentariam uma ética jornalística. Trocando em miúdos: o jornalismo está na nossa vida, faz parte dela, mas ignoramos na maioria das vezes as suas maquinarias internas. E como pouco enxergamos além dos holofotes, tendemos a acreditar que não haja parâmetros definidos de conduta e tampouco valores que orientem os profissionais do ramo.
É num ambiente de crise como este que uma série de iniciativas começam a se desenhar na sociedade, alinhadas por uma preocupação comum: a mídia pode melhorar, o jornalismo também, e o seu público não precisa se acomodar numa posição passiva diante do processo informativo. Entre esses esforços, podemos lembrar quatro ações bastante relevantes, cujos impactos podem redesenhar um pouco a relação entre meios e públicos no país:
Os sindicatos de jornalistas brasileiros, capitaneados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) retomaram a discussão para uma nova redação do Código de Ética da profissão. Propostas já foram encaminhadas, discutidas e devem ser reapresentadas à categoria muito brevemente. Quem executa esse trabalho de sistematização é a Comissão de Ética e Liberdade de Imprensa da entidade;
A Fenaj deve reapresentar no ano que vem nova proposta de criação de um Conselho Federal de Jornalismo, órgão de apoio à sociedade nos tratos com o jornalismo e os jornalistas;
As entidades acadêmicas e classistas do campo da Comunicação e do Jornalismo no Brasil – e felizmente em extensão na América Latina – vêm empreendendo movimento de aproximação e retomada de uma unidade importante para o fortalecimento do setor;
Diversos atores do campo acadêmico e mesmo da sociedade brasileira preocupada com o jornalismo consolidam uma rede de pesquisa para monitoramento dos meios de comunicação, identificação de problemas e proposição de soluções para o seu aperfeiçoamento. Essa Rede Nacional de Observatórios da Imprensa, Renoi, existe desde novembro de 2005.
A Renoi é resultado de uma idéia de quase dez anos. Quando do surgimento do Observatório da Imprensa, em 1996, já havia intenções claras de semear entre as escolas de comunicação projetos semelhantes de media criticism e media watching. Por diversas vezes, tentou-se pavimentar tais caminhos, o que só ocorreu muito recentemente, num momento de plena consolidação do Observatório, de amadurecimento da pesquisa em jornalismo no Brasil e da união de esforços até então espalhados pelo país.
Alicerçada pelo Observatório, a Renoi reúne hoje 31 professores-pesquisadores e mais de 220 alunos, bolsistas ou não. A rede está em nove estados de todas as regiões brasileiras: São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Distrito Federal. Reúne doze instituições superiores de ensino, sendo quatro públicas (UFES, UFSE, UnB, UEPG) e oito particulares (Estácio de Sá, de Belo Horizonte, Univali, Unasp, USC, Unitau, Unama, Unilinhares e Unitri), mais o Projor, ONG que sustenta o Observatório da Imprensa. São quinze nós na rede, instâncias que já têm projetos de acompanhamento da mídia ou que estão construindo suas iniciativas.
Para se ter uma idéia concreta da rede, a Renoi conta hoje com sete observatórios em funcionamento: o SOS Imprensa, o Análise de Mídia, o Canal da Imprensa, o Monitor de Mídia, o Mídia & Política, a Agência Unama e o Observatório da Imprensa. Existem ainda seis projetos em fase de consolidação: o Grupo de Pesquisa de Cotidiano e Jornalismo, o projeto Estudos de Jornalismo Brasileiro, o Laboratório de Estudos de Jornalismo, o MonitorES Unilinhares, a Renoi – Vale do Paraíba e a Renoi – Uberlândia. Outras iniciativas estão sendo geradas.
Na maioria das vezes, os projetos contam com sites na Internet onde difundem suas pesquisas e empreendem o trabalho de acompanhamento dos meios de comunicação. Em apenas seis meses, a rede mostrou-se muito ativa do ponto de vista operacional e bastante sólida nos laços que a constituem. Seus membros comunicam-se freqüentemente por meio de uma lista eletrônica, trocando experiências e informações. Além disso, articulam mesas de debates em eventos acadêmicos nacionais para estreitar os contatos e disseminar os frutos da rede. Neste ano, a Renoi estará presente em pelo menos dois grandes encontros da área: o 29º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom, em setembro em Brasília, e o 4º Encontro da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo, em novembro em Porto Alegre.
Então, a Renoi está consolidada e ponto final? Claro que não. Até agora, seus membros fincaram as bases que podem suportar um coletivo como este, mas uma construção não se firma apenas assim. Passos fundamentais e emergenciais são a articulação dos pesquisadores em torno de projetos comuns de investigação; o fortalecimento dos nós ainda em consolidação, com apoio dos já estabelecidos; formalização da Renoi como uma rede de pesquisa frente às associações científicas da área e às agências de fomento; e o início de aproximações com redes semelhantes em outros países e continentes.
Para fazer valer sua importância política, pedagógica e contribuir efetivamente para o aperfeiçoamento das práticas, dos procedimentos e dos produtos jornalísticos nacionais, a Renoi ainda tem uma caminha pedregosa, longa, mas não menos empolgante e desafiante.
III – Avaliação de um caso de observatório regional
O acompanhamento sistemático e a crítica perene aos meios de comunicação são atividades regulares e já consolidadas em alguns países, sobretudo aqueles mais desenvolvidos economicamente e com instituições políticas fortalecidas. Isto é, estabilidade política e segurança econômica são fatores que auxiliam a construção de um cenário onde mídia e público dialoguem com mais facilidade, freqüência e rigor.
Evidentemente, essas não são as únicas condições para isso, mas tais ingredientes permitiram, há mais tempo, a emergência de uma série de iniciativas de análise e crítica de mídia. O surgimento de media watchers nos Estados Unidos, na Europa e em países do Oriente – entre os quais a Austrália e o Japão – trouxe benefícios não apenas ao setor empresarial (na medida em que aponta para parâmetros de qualidade) ou aos profissionais (na medida em que baliza condutas éticas), mas também ao público. Leitores, ouvintes e telespectadores comuns também ganham com a crítica de mídia, pois esse conjunto de atividades fomenta o senso crítico do público, estimula-o a exigir seus direitos como cidadãos e permite um exercício mais ativo (e não só reativo) no processo comunicacional.
Embora sua história seja permeada de instabilidade política e tropeços econômicos, a América Latina vem evoluindo nos últimos anos, consolidando as instituições democráticas em muitos de seus países e reduzindo os solavancos provenientes de crises econômicas. Isso, sem dúvida, contribui para o desenvolvimento dos sistemas midiáticos, para o amadurecimento político dos cidadãos e para o avanço nas diversas práticas cidadãs. No campo da crítica de mídia, isso parece evidente. Atualmente, existem mais de duas dezenas de experiências em curso em 12 países do subcontinente[1]. Essas iniciativas vão de observatórios de meios a blogs e sites pessoais, de núcleos de pesquisa acadêmica a coletivos de organizações não-governamentais. Há semelhanças entre os exemplos, mas também existem particularidades, condição que reforça a dificuldade de unificar um perfil dessas experiências, conforme já apontaram Broullón, Hernández, López e Pereira (2005).
Apesar disso, percebe-se uma certa efervescência da crítica de mídia nos países latino-americanos, e essa ebulição é mais facilmente observada no Brasil. Uma das experiências brasileiras merece aqui um relato de seu surgimento, dos ajustes que sofreu para desenvolver-se e se consolidar e dos resultados que alcançou. Trata-se do Monitor de Mídia (http://www.univali.br/monitor), primeiro observatório regional de meios que surgiu no Brasil, cujo modelo foi inspirado no Observatório da Imprensa (http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br), a iniciativa mais longeva da América Latina.
Um olhar limitado
O Monitor de Mídia é um projeto de acompanhamento da imprensa de Santa Catarina, estado do sul do Brasil, e é uma iniciativa de caráter acadêmico, pautada no ensino e na investigação científica. O projeto é desenvolvido por um grupo de pesquisa formado por professores e alunos do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e surgiu em agosto de 2001. Sua atuação se dá em três frentes:
a) fazer o monitoramento de jornais do estado;
b) desenvolver pesquisas acerca de produtos, processos e procedimentos jornalísticos;
c) fomentar a discussão sobre mídia.
Para isso, o Monitor de Mídia conta com dois canais de interação com seus públicos: um site e um programa semanal exibido no sistema de TV a cabo. No site, são difundidos diagnósticos da observação dos jornais catarinenses (apontando problemas técnicos e deslizes éticos e salientando aspectos positivos da cobertura noticiosa), bem como artigos científicos e textos analíticos em seções fixas. São divulgados no site também os resultados das pesquisas científicas desenvolvidas por professores e alunos. Assim, a página web reúne materiais analíticos de duas naturezas: diagnósticos pontuais e factuais; e avaliações mais elaboradas, extensas e aprofundadas. A combinação desses conteúdos permite maior variedade de leituras e alcance de diferentes públicos, do cidadão comum – curioso dos processos jornalísticos – ao pesquisador da comunicação, interessado em resultados de investigações com maior rigor e em conteúdos atuais. O site está em funcionamento há cinco anos e reúne toda a produção textual do projeto, com acesso irrestrito.
O programa de TV denomina-se Monitor na Mídia, e é uma atuação recente, tendo iniciado em março de 2006. Sua principal função é contribuir para a disseminação de uma cultura de consumo crítico dos meios de comunicação, na medida em que fomenta o debate público sobre a atuação da mídia regional. O programa é semanal e temático, sempre trazendo entrevistas com especialistas, enquetes com populares, reportagens que explicam como funcionam os meios e os processos de comunicação e dicas culturais para complementação dos conteúdos. Com o surgimento do programa de TV, o projeto objetivou atingir outros públicos, ampliando assim seu alcance. Entretanto, essa meta é limitada já que a veiculação do programa se dá numa emissora universitária e pelo sistema de TV a cabo, condições que ainda são restritivas[2].
Ambas as formas de interação do projeto têm um olhar muito definido sobre os meios de comunicação: o olhar regional, característica fundadora do projeto e que a diferencia, por exemplo, do bem-sucedido Observatório da Imprensa, juntamente com sua origem acadêmica. Neste sentido, o olhar do Monitor de Mídia é assumidamente limitado, preocupado com a crítica e o aperfeiçoamento da imprensa do estado, disposto a contribuir com isso.
Relações com o ensino e a pesquisa
O Monitor de Mídia nasceu de indagações em sala de aula, durante a disciplina de Legislação e Ética em Jornalismo (que ministro desde 1999) e de constatações de uma pesquisa realizada em 2000-2001, quando tentei mapear quais os instrumentos que a sociedade catarinense tinha para avaliar a qualidade do noticiário local e a conduta ética dos profissionais. A pesquisa apontou para uma série de aspectos que ajudam a pensar como o jornalismo catarinense percebe os seus deslizes éticos[3], mas era necessário ir além do mero desenvolvimento da investigação. Algo concreto precisava surgir, e a idéia de criar um observatório dos meios regionais se delineou.
Para definir os critérios de avaliação da mídia, selecionar os veículos a serem observados e estruturar uma dinâmica de funcionamento, optou-se por algumas referências. Foram escolhidos os três maiores jornais de cobertura estadual – A Notícia, Diário Catarinense e Jornal de Santa Catarina –, todos diários, cada um situado numa cidade importante e juntos, cobrindo todos as regiões e municípios catarinenses.
Cada edição do site começa com reunião de pauta, ocasião em que são definidos os temas a serem abordados. Em seguida, os alunos passam a acompanhar os jornais diariamente, coletando informações e fazendo anotações que auxiliem na avaliação geral. Adiante, todos se reúnem para sistematizar as informações e estruturar os textos. Os professores da equipe acompanham de perto todos os estágios, e os conteúdos só vão para a web com sua aprovação.
Em termos de critérios de análise, a equipe do observatório entende que a crítica de mídia deve funcionar como catalisadora de procedimentos para aperfeiçoamento dos meios de comunicação. O exercício da leitura crítica precisa se pautar por uma postura positiva, que aspire oferecer subsídios para uma melhora no jornalismo ali praticado (cf. DINES, 1997). Não se trata de mera identificação de deslizes técnicos ou de falhas éticas, nem tampouco uma avalanche de palpites sobre o que é melhor ou pior.
A análise dos produtos midiáticos precisa se escorar em valores do próprio jornalismo[4], ancorados em princípios que a sociedade consumidora de informação considera relevantes para a sua manutenção. Liberdade de imprensa e fidelidade ao fato são importantes? Sim. Bem como pluralidade de versões, equilíbrio nos relatos, precisão e correção; contextualização, foco no interesse público, visão de mundo ampla; não-parcialidade, transparência nas atitudes, respeito às fontes e aos direitos humanos.
Para além da rotina produtiva do site, os professores da equipe reforçam a interface entre o ensino e a pesquisa ali desenvolvida. Assim, o site alimenta disciplinas do curso de Jornalismo e vice-versa. Conteúdos publicados são usados como instrumentos para-didáticos; questões surgidas em sala de aula inspiram pesquisas e pautas para o monitoramento.
Por ser iniciativa de um grupo de pesquisa, o Monitor de Mídia tem como compromisso oferecer sistematicamente investigações científicas. Esse trabalho – sob a forma de iniciação científica ou não – vem permitindo a geração de conteúdos mais complexos e densos para alimentar o site, além da sua difusão em eventos e publicações acadêmicas. Em cinco anos de atuação, foram desenvolvidas seis pesquisas:
Imprensa e Desenvolvimento Social: presença dos jornais em dez municípios do Vale do Itajaí;
Direitos Humanos nas páginas dos jornais catarinenses;
O erro como aspecto ético e como fator de comprometimento da qualidade técnica no jornalismo: incidência, percepção e correção nos jornais;
Liberdade de Imprensa em Santa Catarina nos 20 anos da redemocratização brasileira;
Os fatos e as versões da telinha: diagnóstico do telejornalismo regional no Vale do Itajaí;
Democracia Mediática e Visibilidade: presença de negros nas fotografias dos jornais catarinenses.
Outras quatro pesquisas estão em fase de execução e serão concluídas em 2007:
Jornalismo impresso: como os três maiores jornais de Santa Catarina aplicam o conceito de estrutura da notícia na divulgação de matérias jornalísticas
Cultura popular e mídia impressa: análise dos três principais diários catarinenses
Jornalismo Esportivo no Vale do Itajaí: o perfil dos comunicadores da região
A construção do feminino nas revistas Capricho e Atrevida
A íntima convivência entre as pesquisas do grupo, a alimentação do site do projeto e as disciplinas do curso de Jornalismo têm provocado movimentos de retroalimentação que reanimam práticas. O processo de ensino-aprendizagem assume-se dinâmico, veloz e sinérgico. Mas também complexo e multifacetado.
Relações com o mercado e a sociedade
Como não poderia ser diferente, o projeto Monitor de Mídia também interage com o mercado jornalístico, já que exerce a crítica sistemática de alguns de seus produtos. Neste sentido, no início da experiência, surgiu o receio de que profissionais e empresas do setor não compreendessem a atuação de um observatório regional de meios. Temia-se que houvesse não apenas uma reação à crítica, mas também uma resistência e oposição ao trabalho. Felizmente, nada disso aconteceu.
Surpreendentemente, à medida que o site publicava suas análises, repórteres e redatores dos jornais observados mandavam e-mails, justificando algumas de suas práticas, concordando ou discordando das avaliações feitas. Esse comportamento não foi massivo, mas suficiente para se perceber que os profissionais acessavam os conteúdos, refletiam sobre eles e reagiam às críticas. Esse retorno permite afirmar que a categoria não ignorou a iniciativa, mas a considerou como uma instância legítima da crítica. Paralelo a isso, os editores-chefes dos três jornais passaram a imprimir os diagnósticos quinzenais publicados pelo site para afixarem em seus quadros nas redações. Desta forma, incentivavam a leitura dos demais e – mais uma vez – davam um voto de confiança ao projeto. Essa prática se mantém, conforme relato dos editores dos jornais.
Temeu-se também inicialmente que, se avessos à crítica, os jornais poderiam retaliar os alunos, futuros profissionais. Novamente, isso não aconteceu. Tanto é que dois dos três diários analisados já contrataram estudantes que passaram pelo projeto Monitor de Mídia, desmontando a tese de que poderia haver perseguição aos ex-críticos.
Diante disso, as relações entre o observatório e o mercado jornalístico estão suficientemente resolvidas? Não, pois esse diálogo pode se estreitar ainda mais. A crítica acadêmica precisa não apenas ser recebida pelos profissionais, mas também se converter num elemento que motive mudanças significativas nas práticas diárias dos profissionais e na rotina dos meios. Isto é, a crítica precisa se transformar numa etapa do processo de transformação dos procedimentos e dos produtos. Quando se chegar a este estágio, o observatório estará cumprindo verdadeiramente uma de suas funções: contribuir para o aperfeiçoamento da mídia.
O mesmo se pode dizer das relações do observatório com a sociedade em geral. O Monitor de Mídia se ressente ainda de estar restrito a algumas camadas de leitores: o público universitário e o profissional, ambos no campo do Jornalismo. É preciso ampliar esse espectro, alcançando os mais diversos atores sociais, com destaque as classes econômicas inferiores, mais carentes de informação e instrução formal. O Monitor de Mídia precisa provocar debates e promover eventos que possibilitem a realização de uma outra função dos observatórios de meios: contribuir na alfabetização para o consumo crítico dos meios de comunicação.
Esses são alguns dos desafios a vencer.
Referências Bibliográficas
BERTRAND, Claude-Jean. A deontologia das mídias. Bauru: Edusc, 1999
BERTRAND, Claude-Jean. O arsenal da democracia. Bauru: Edusc, 2002
BROULLÓN, G., HERNÁNDEZ, T., LÓPEZ, X. y PEREIRA, J. (2005), “Los observatorios de comunicación”, en Chasqui, núm. 90, pp. 38-45.
BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. SP: Cia. das Letras, 2000
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Monitores de mídia: como o jornalismo catarinense percebe seus deslizes éticos. Florianópolis-Itajaí: Editoras da UFSC e Univali, 2003
CORNU, Daniel. A ética da informação. Bauru: Edusc, 1994
DINES, Alberto. A crítica de mídia só deve ser negativa? 5 de maio de 1997. Disponível em www.teste.observatoriodaimprensa.com.br
DINES, Alberto. O papel do jornal. SP: Summus, 1994
HERRERA, Susana y CHRISTOFOLETTI, Rogério. Una guía de los observatorios de medios en América Latina. Inédito, 2006
KARAM, Francisco José. Jornalismo, Ética e Liberdade. SP: Summus, 1997
KOVACH, Bill & ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. SP: Geração Editorial, 2003
KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica. SP: Fundação Perseu Abramo, 1998
LOBATO, Elvira. Gugu obtém concessão de TV durante 1º turno. Folha de S.Paulo, 20 de outubro de 2002
MARCONDES FILHO, Ciro. Mediacriticism ou o dilema do espetáculo de massas. IN: PRADO, José Luiz Aidar (org.) Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massa às ciberculturas. Hacker Editores: São Paulo, 2002
SODRÉ, Muniz. Existe uma consciência ética na imprensa? IN: PAIVA, Raquel. Ética, cidadania e imprensa. Mauad: Rio de Janeiro, 2002
TV Brasileira: 50 anos. Mudar para não mudar. Folha de S.Paulo, 16 de setembro de 2000
[1] Levantamento feito por Herrera e Christofoletti (2006) relaciona 39 experiências na América Latina, algumas não mais em atividade. No subcontinente, foram identificados focos de trábalo na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Equador, Guatemala, México, Peru, Uruguai e Venezuela. O levantamento foi feito entre setembro de 2005 e maio de 2006.
[2] O programa é exibido na TV Univali, sempre nas noites de terças-feiras, com reapresentações nas sextas-feiras. A emissora finaliza trâmites para obter concessão pública e tornar-se uma exibidora de sinal aberto, condição que de forma concreta amplia o alcance de públicos.
[3] A pesquisa foi publicada dois anos depois. Mais detalhes ver Christofoletti (2003).
[4] Para mais detalhes, consultar CORNU (1997); BERTRAND (1999 e 2002); BUCCI (2000); KARAM (1997); KUCINSKI (1998); KOVACH & ROSENSTIEL (2003).
[1] Partindo de um caso isolado de reflexão pública sobre a conduta do jornalista, Muniz Sodré se pergunta se existe uma consciência ética na imprensa. “… o jornalismo, embora alardeando por meio de seus representantes institucionais a defasa dos antigos valores da liberdade de expressão, assiste ao desaparecimento do interesse público e do horizonte ético” (2002: 196)
[2] Mesmo previsto na Constituição Federal desde 1988, e regulamentado por lei em 1991 (nº 8389), o Conselho de Comunicação Social só foi composto e passou a operar em 2002. Funciona como um órgão auxiliar do Congresso Nacional e, portanto, é consultivo, não delibera, não define políticas para o setor. Esta natureza fragiliza o órgão, limitando seu alcance e seu poder de atuação. A sociedade, representada pelos 13 membros constituintes do Conselho e seus respectivos suplentes, encontra poucas condições reais de intervir no sistema de comunicação e de apontar novas orientações para uma reestruturação. Nos estados – exceto em Alagoas e Rio Grande do Sul -, não há iniciativas semelhantes. Com isso, políticas públicas de comunicação são abstrações ainda. Nos municípios – também unidades da federação e, portanto, passíveis de comportar esses órgãos -, sequer são conhecidos os mecanismos para a instalação de conselhos locais de comunicação.
[3] A primeira versão do texto desta seção foi publicado no site Mídia e Política, do NEMP-UnB. Disponível em http://www.midiaepolitica.unb.br/visualizar.php?id=117&autor=Rogério%20Christofoletti