Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Provação e desrespeito em dobro

Quando ouvem falar em burocracia, as pessoas pensam imediatamente em normas administrativas que só existem para dar emprego a funcionários incumbidos de exigir o seu cumprimento e de fiscalizar a sua observância.

É uma avaliação mais certa do que errada. A burocracia geralmente só tem olhos para os seus próprios interesses. Isso, quando não se põe a criar dificuldades para vender facilidades.

Mas a indiferença pelas dores de cabeça que inflige a quem dela dependa não é exclusiva da burocracia pública. As grandes burocracias da área privada se comportam com o mesmo desdém.

Para a burocracia estatal, somos todos, antes de tudo, devedores de obrigações. Ela não está nem aí para a nossa condição de cidadãos e contribuintes. Para a burocracia empresarial, somos todos, antes de tudo, pagadores. Ela não está nem aí para os nossos direitos de consumidores.

Quando se cai ao mesmo tempo na malha das duas, é provação e desrespeito em dobro. Que o digam os brasileiros que nas últimas semanas e especialmente nos últimos dias se viram na condição de passageiros de vôos comerciais no Brasil, ou seja, no papel de palhaços.

Na ampla e quase sempre informativa cobertura do apagão aéreo que se seguiu à trágedia do choque entre o Boeing e o Legacy, em 29 de setembro, a mídia tem registrado os padecimentos e as justas manifestações de revolta dos viajantes presos em terra por culpa de um sistema de controle de tráfego aéreo em pane material e humana.

Mas apenas de raspão a imprensa registra a brutal insensibilidade das autoridades e das empresas de aviação diante do sofrimento de quem, afinal, sustenta umas e outras.

Uma exceção é a matéria do Estado de hoje em que aparece o revoltante jogo de empurra entre as aéreas e os órgãos federais do setor. A TAM soltou uma nota dizendo que a culpa pela falta de informações nos aeroportos é das autoridades que não fornecem detalhes sobre os atrasos. A Agência Nacional de Aviação Civil, de seu lado, preferiu condenar o que chamou de ‘boatos’ sobre a segurança de vôo no Brasil.

O passageiro é tratado como se fosse um crime o seu desejo de ir e vir nas horas previstas e, sendo isso impossível, de ficar sabendo o que o espera – além, naturalmente, de ter hotel e demais despesas pagas.

Já não basta o fato de que, na área oficial, ‘ninguém se entende’, como escreve na Folha a colunista Eliane Cantahêde – que, por sinal, publicou as melhores matérias sobre os problemas que provocaram o mais desastre aéreo da história brasileira.

As burocracias civil e militar batem cabeça, as aéreas voam em círculos – e ninguém, rigorosamente ninguém, oferece aos usuários um mísero pedido coletivo de desculpas ou elementar manifestação de solidariedade.

Impossível discordar, por isso, da colunista Dora Kramer, do Estado. Ela critica o ministro Tarso Genro por ter dito que o governo não se deixará levar por uma ‘pressa neurótica’ para sanar o apagão aéreo. Como se desde a primeira hora o governo estivesse trabalhando 24 horas por dia para repor as coisas nos eixos.

Só ontem o presidente criou um ‘gabinete de crise’ para enfrentar o caos aéreo.

A própria expressão ‘pressa neurótica’ já é um desrespeito aos passageiros, às suas famílias e a todos quantos dependem, direta ou indiretamente, do funcionamento normal da aviação civil no país.

Será neurótica a dona de casa carioca que deixou de fazer um transplante porque o rim que vinha de Belo Horizonte acabou não vindo? Ou o garoto internado em São Paulo que perdeu a vez porque o fígado não chegou a tempo?

OK. Dora Kramer não morre propriamente de amores pelo governo Lula. Mas hoje parece líquido e certo que a sua cobrança é procedente.

‘Do presidente da República, que tantas opiniões emite, tantos conselhos fornece e tantas palestras profere sobre os mais diferentes assuntos’, escreveu ela, ‘nem uma só manifestação dirigida ao desrespeitado público pôde ser observada.’

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