Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quando o repórter julga pelo leitor

O manual ortodoxo do ofício ensina que primeiro vem a notícia. Depois a interpretação. Por fim, a opinião.


Claro que notícia e interpretação podem vir juntas – desde que fique claro o que é uma coisa e o que é outra; desde que a primeira seja fiel aos fatos e a segunda seja plural; e desde que o entrelaçamento entre elas venha mesmo para explicar e não para confundir.


O que não se deve é colocar opinião no mesmo saco da notícia, ou, pior ainda, apresentar a opinião como se interpretação fosse. Interpretação é análise o quanto possível isenta, feita com base em visões diversas de quem for do ramo. Opinião é juízo de valor. Fundamentada ou não, é uma tomada de posição.


Um exemplo gritantemente óbvio:


Notícia: pesquisa do instituto Sensus, divulgada hoje, põe Lula 10 pontos à frente de Serra num hipotético segundo turno que ocorresse agora.


Interpretação: o resultado aumenta o capital de Lula para fazer alianças com partidos como o PTB, o PL e o PP, goste disso, ou não, o PT.


E mais: o resultado aumenta o dilema hamletiano de José Serra de trocar o certo, a Prefeitura em que prometeu ficar até o fim do mandato, por um Planalto que aparentemente está voltando a ficar tão duvidoso como no tempo de sua promessa.


Opinião: o resultado deve ser comemorado (ou lamentado) porque sugere que Lula deu a volta por cima da crise do mensalão.


Na contramão desse singelo roteiro, o Estado publicou domingo matéria de página inteira, dividida em três blocos, o principal dos quais tem por título “Lula usa questão racial como trunfo” e por sub-título “Campanha pela reeleição inclui medidas para beneficiar as populações negra e parda, que são 48% do eleitorado”.


No centro da página, uma charge mostra um Lula negro, sorridente, com um colorido barrete africano na cabeça.


O tom geral da matéria é que existe um nexo entre as aspirações do presidente à reeleição e iniciativas favoráveis aos chamados afrodescendentes – embora cite no bloco final um deputado petista dizendo que isso “não é coisa de ano eleitoral”.


O miolo da reportagem se ocupa do polêmico projeto que reserva 50% das vagas nas universidades federais, em nível de graduação e de pós, a egressos de escolas públicas e a estudantes negros (metade/metade).


Em pelo menos três passagens do texto, o autor justapõe inconfundivelmente informação e opinião.


Primeiro, quando escreve que a proposta das cotas “radicaliza para pior as iniciativas anteriores” [da mesma natureza].


Lugar de um julgamento desses é na página de editoriais e de opinião.


Segundo, quando o autor lembra que estão na universidade 13% dos brasileiros em idade de estudar, mas apenas 6% dos brasileiros negros, e emenda: “É óbvio que não se pode ficar de braços cruzados diante dessa situação.


Também acho. Mas, de novo, essa é uma afirmação normativa, que não cabe numa reportagem – a menos que se mandem para o espaço as distinções clássicas mencionadas na abertura deste texto.


Terceiro, quando ele considera “brilhante” a argumentação de um juiz conservador [o “conservador” é acréscimo meu] da Suprema Corte americana contra a reparação de injustiças passadas que fira direitos individuais a qualquer tempo.


Melhor teria feito o repórter se ouvisse especialistas que opinassem sobre o brilho e a procedência do raciocínio do juiz.

Além disso, uma afirmação parece ir de encontro a fatos sabidos: “Ninguém entra em faculdade pública porque tem pai rico”. Embora seja verdade que só pai rico não põe ninguém numa USP, é notório que pai rico permite ao filho estudar em bons colégios pagos e terminar a sua preparação para entrar em faculdades disputadas, com altas notas de corte, nos melhores e mais caros cursinhos pré-vestibular.


Por fim, o repórter “briga” com uma fonte. O deputado do PT baiano, Luiz Alberto, presidente da Frente Parlamentar pela Igualdade Racial, diz que a classe média branca é cúmplice da crise da escola pública porque “em vez de defendê-la preferiu acomodar-se e pagar mensalidades nas escolas privadas”.


Ao que o repórter retruca que Luiz Alberto não esclarece “por que se pode falar em comodismo diante das salgadíssimas mensalidades da rede particular”.


O leitor fica sem saber se o repórter apresentou essa objeção à fonte e ela não soube esclarecer a presumível contradição, ou se a objeção, valha o que valer, ocorreu ao repórter ao redigir o texto.


A questão das cotas e o alegado empenho de Lula de cabalar o voto negro são assuntos suficientemente sérios para serem levados ao leitor com a objetividade a que ele tem direito de modo a poder formar a sua própria opinião.


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