Pelo menos no modelo de jornalismo que separa o registro dos fatos de sua interpretação, o repórter depende basicamente de si – do seu treinamento, da sua milhagem, do seu nível de informação, de sua sensibilidade e de estar no lugar certo na hora certa – para captar e descrever os acontecimentos e transformá-los em notícia.
Já para lhes dar contexto e perspectiva, a fim de indicar ao leitor, em suma, o que significam segundo diferentes visões, ele depende de terceiros. A começar dos portavozes dos interesses em jogo nas situações objeto da cobertura – os dois ou mais “lados” da questão.
Naturalmente, quanto maior o antagonismo entre eles, maior o distanciamento entre as respectivas versões, bem como entre as verdades que nelas se fundamentam, maior ainda a relutância mútua em julgar equânime a cobertura jornalística que dê voz ao adversário. Mas o jornalismo em geral está preparado para lidar com essas diferenças – aliás, é o pão de cada dia do ofício.
Outra coisa é dar conta de eventos e processos cujos protagonistas “falam dois idiomas distintos, as próprias palavras que usam significam o oposto de parte a parte, e a guerra da linguagem pode confundir as tentativas do repórter de narrar o conflito de modo aceitável para os dois lados”.
As aspas são do jornalista Ethan Bronner, chefe da sucursal do New York Times em Jerusalém, e estão na abertura do seu artigo de 1.500 palavras – “As balas na minha caixa de entrada” – na edição de domingo, 25, do jornal.
O seu assunto é o jornalismo diante do conflito israelense-palestino que o autor acompanha de perto há mais de 25 anos. O gancho, evidentemente, é Gaza.
Depois da ofensiva de três semanas de Israel, escreve Bronner, “vale a pena fazer uma pausa para notar como tem sido difícil narrar essa guerra de maneira que outros considerem como neutra” – supondo possível, ou em circunstâncias extremas, moralmente legítima a neutralidade.
Não só o que é fato para uns é fraude para outros, como ainda há o abismo intransponível dos nomes que dão para as coisas que os confrontam. Para os palestinos, a barreira que serpenteia na Cisjordânia é um muro; para os israelenses, uma cerca. Estes chamam o conflito de 1948 de Guerra de Independência; aqueles, de catástrofe (hakhba, em árabe).
Bronner compara a tentativa de contar a história de forma a que os dois lados possam ouvi-la da mesma maneira a uma tragédia grega em que o jornalista faz o papel desprezado do coro que dá as más notícias. Falando na primeira pessoa, ele diz que se sente como se estivesse avivando as chamas, contribuíndo com cada palavra que escreve para a incompreensão e os antagonismos mútuos, “porque a fervorosa voz interior de cada lado é tão alta que abafa tudo o mais”.
Estão em curso na região – aponta o jornalista numa das mais bem resolvidas passagens do seu texto – “duas guerras separadas, baseadas em dois conjuntos muito diversos de premissas”.
Como o mundo se interessa profundamente pelo conflito, isso deveria facilitar o trabalho do repórter, porque os atores, os nomes dos lugares e a história são familiares. Mas, a exemplo dos próprios envolvidos, os leitores têm ideias radicalmente contrastantes a respeito. Daí que “cada vez que eu falho em contar a história que cada lado conta a si mesmo”, desabafa Bronner, “a seus olhos eu fracassei – e põe fracasso nisso”.
Assim, cada vez que ele escreve um artigo sobre o conflito que não reflete a versão israelense – “se, por exemplo, focalizo o sofrimento palestino, ou alegados malfeitos de Israel, ou cito grupos de defesa dos direitos humanos como a Anistia Internacional” – é como se ele tivesse demonstrado compartilhar em segredo os pontos de vista do inimigo.
Um leitor lhe escreveu: “No seu jornal, todas as questões e todas as críticas se dirigem a Israel, e tudo se baseia numa coleção de organizações antissemitas disfarçadas de humanitárias.”
A recíproca é verdadeira – embora tenha ficado patente que Israel e os seus simpatizantes protestaram muito mais sobre a cobertura de Gaza na imprensa mundial do que os palestinos.
De toda forma, sempre que ele não alude à verdade palestina segundo a qual Israel é um país nascido em pecado – “quando, por exemplo, examino os objetivos de Israel na guerra em Gaza sem implicitamente condená-la como um massacre, ou quando escrevo sobre Israel sem questionar a sua legitimidade” – ele terá revelado o seu alinhamento e não pode mais merecer confiança como repórter.
Outro leitor lhe escreveu: “Graças a você e à escória como você, Israel pode agora matar milhares e você pode descrever tudo isso como se fosse um desastre de trem acontecido por acaso.”
Como Israel não permitiu a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza até a guerra ser suspensa, o New York Times dependia dos relatos da jornalista palestina Taghreed el-Khodary, ali baseada, para cobrir os fatos in loco.
Nos primeiros dias da ofensiva, ela testemunhou no Hospital Shifa a execução, por pistoleiros do Hamas, de um alegado colaborador de Israel. Um deles a advertiu para que que jamais contasse o que viu. Ela respondeu que não havia hipótese de ficar quieta. Em seguida, fez umas ligações para apurar se tinham ocorrido outros episódios do gênero e passou as informações por telefone a Bronner, do outro lado da fronteira. No dia seguinte, a história estava no New York Times.
Blogueiros árabes atacaram Taghreed “com o pior insulto que podiam conceber”, diz Bronner – “sionista”. Ela trabalhava para um jornal “completamente acumpliciado com as atrocidades que Israel comete contra os palestinos em Gaza e na Cisjordânia. Você faz com que isso pareça razoável. É a sua tarefa.”
Em compensação, funcionários israelenses alegavam estar certa a decisão de impedir a entrada de repórteres em Gaza porque nenhum tipo de jornalismo independente seria possível numa área controlada pelo Hamas. Indigna-se Bronner: “Será que essa gente nunca leu nenhuma matéria de Taghreed?”
Ele mesmo responde:
”Muitos leram, mas não importa, porque a sua crença na sua própria visão é tão acachapante que qualquer coisa que a contradiga se torna um detalhe insignificante.”
E cita um outro leitor ainda:
”Basicamente, você está ajudando os terroristas e aumentando o sangue derramado por contar só um lado da história e ignorar por completo o quadro todo.”
A amargura do jornalista é compreensível. No entanto, a menos que mude de profissão, ou vá exercê-la em paragens mais aprazíveis, é o preço que ele – entre tantos outros – paga pela tentativa de descrever os fatos como pode vê-los e de explicá-los incorporando os argumentos, impossivelmente contraditórios, dos dois lados.
Bronner, por sinal, foi o primeiro jornalista ocidental a escrever que o objetivo de Israel em Gaza não era apenas neutralizar a capacidade ofensiva do Hamas, com seus foguetes sobre as cidades israelenses mais próximas. O alvo, sobretudo, era destruir a infraestrutura física que permitia ao Hamas governar a Faixa dentro de um semblante de normalidade, apesar das fronteiras cerradas que transformaram o lugar em um gueto.
Escolas, centros comunitários, mesquitas, o parlamento, ministérios, a prisão central e praticamente todas as delegacias de polícia foram arrasados ou irremediavelmente danificados. Detalhes da devastação estão em outra matéria de Bronner – “Em meio à destruição, a volta à vida em Gaza” –, também no NYT de domingo.
”O medo vende jornais”
Os enviados especiais da imprensa brasileira mandaram várias reportagens sobre o apoio praticamente unânime da população israelense aos ataques a Gaza. A mais recente delas, do repórter Marcelo Ninio, da Folha, focaliza um dos raros opositores de renome da guerra, o veterano colunista Gideon Levy, do Haaretz.
Atacado por todos os lados, até por alguns de seus antigos companheiros do movimento pacifista, o jornalista “tornou-se um símbolo solitário da diminuta minoria israelense que se opôs à ofensiva contra o Hamas em Gaza”, informa Ninio. “Sua revolta contra o bombardeio de áreas civis, a identificação com o sofrimento dos palestinos e o retrato da sociedade israelense como racista e intolerante lhe renderam a pecha de traidor, hipócrita e até ameaças de morte.”
Pode ser pior do que isso, dependendo do “traidor” – e é uma pena que nenhum jornal brasileiro tenha publicado a esse respeito um relato como o de Seth Freedman no Guardian de Londres da quarta-feira passada, 21, sob o título “Como Israel afoga o dissenso”.
A matéria destaca o caso de Sharon Dolev, atacada a jatos de água por um grupo de bombeiros quando participava de uma vigília pacífica contra a guerra, em frente a uma base área de Tel-Aviv. Sharon foi ainda ameaçada de ser levada para o quartel da corporação para “chupar todos nós”, conta Freedman.
Em 20 anos de militância pacifista e de entendimento com os palestinos, Sharon já foi agredida, atingida por balas de borracha, insultada, humilhada – e, naturalmente, ameaçada de morte. Mas, diz ela, esse foi o primeiro episódio em que o Estado se sentiu seguro para agir como agiu – em Israel, funcionários públicos em serviço são proibidos de manifestar opiniões políticas.
As imagens da agressão dos bombeiros, num site noticioso israelense, motivaram 380 comentários. Só 10 defenderam a ativista. Um internauta escreveu: “Por que usaram água? Deviam ter usado ácido.”
”No passado”, observa Sharon para explicar o que mudou em Israel, “chamar alguém de racista era a pior acusação que se poderia fazer. Depois, você começava a ouvir pessoas dizendo ‘Eu sei que sou racista, mas…’. Agora, se ouve ‘Eu sei que estou falando como um nazista, mas pelo menos os nazistas sabiam lidar com os seus inimigos’.”
Para ela, o processo de “desumanização” dos palestinos está em estágio avançado. “O medo nos transformou em feras”, acusa. E aponta o dedo para a imprensa: “A mídia é tão responsável como o governo por atemorizar continuamente o israelense comum. O medo vende jornais.”