O manifesto a respeito do Estatuto da Igualdade Racial e da política de cotas para minorias étnicas, agora a favor da aprovação dos projetos, fez a imprensa se abrir para esse debate como raramente antes. O Estado de S. Paulo publicou os dois textos. A Folha, que havia dado a íntegra do manifesto contrário, como artigo na página 3, resumiu e remeteu para íntegras e signatários na internet. O Globo não deu nada até hoje (4/7).
A linguagem adotada nos dois documentos deveria fazer pensar os que tratam essas propostas a chibatadas, geralmente os que as condenam, como faz na Veja desta semana o colunista André Petry.
O título de seu artigo poderia ser lido como uma advertência a respeito do conteúdo: “A estupidez racial”. O texto é montado com agressões. Algumas contra o senador Paulo Paim (que ele chama de deputado; seria tão trabalhoso ou desimportante checar se o parlamentar é deputado ou senador?).
Petry diz que Paim é autor de uma idéia estapafúrdia, inspirada no nazismo. O senador criticou como manifestação da elite o manifesto contra as cotas. Diz Petry, do alto de sua cátedra jornalística: “Pobre Paim”.
E tome agressão: paranóia, calamidade, ovo da serpente, negação acintosa à originalidade da miscigenação brasileira, que seria um dado fundador da identidade do país (alguns poderão objetar que a discriminação, ela sim, é dado fundador), geração de clima de confrontação racial no país, naufrágio no pântano, pretensão a fazer apenas “politicazinhas de inclusão”.
Eu ousaria desconfiar que, além das convicções tão marcantes do articulista, há na sua peça a evidência de uma tentação. A tentação de falar algo que, supostamente, seu público leitor apreciará. Isso sobra em tópicos regulares assinados por jornalistas.
“Nem se perca tempo dizendo que, ao privilegiarem essa ou aquela ´raça´, os projetos ferem o ditame constitucional segundo o qual todos são iguais perante a lei”, escreveu Petry.
Eu empreguei algum tempo para indagar do ex-deputado, ex-ministro da Justiça e ex-juiz do Supremo Célio Borja se ele consideraria a proposição inconstitucional. Borja disse que não, desde que não se tratasse de algo excludente (“só para negros, só para índios”, etc). Mas pediu a máxima cautela. Ver ‘Mídia privilegia choque de idéias sobre racismo‘.
É curioso que tanta gente afirme que o Estatuto e a Lei de Cotas são inconstitucionais e tão pouca gente consulte juristas para confirmar ou rejeitar essa afirmativa. Supõe-se que, em matéria tão controvertida, o tenham feito o governo, que apóia a proposta, e o Congresso, onde ela tramita (foi aprovada no Senado depois de relatada por Rodolfo Tourinho, do PFL da Bahia).
Ao final, Petry veste integralmente o figurino da mídia como quarto poder: “Não queremos ser uma federação de minorias. Queremos ser um país de cidadãos. É isso o que interessa a todos os brasileiros”. Ele, que não foi eleito para nada, fala em nome do povo brasileiro.
Raramente se viu algo que dê tanto sentido a uma antiga, feia e muito raramente empregada palavra da língua portuguesa: pesporrência.
O clangor da tuba nacionalista
Houve quem atribuísse à política de cotas o desígnio sorrateiro de solapar os fundamentos de Estado e nação brasileiros (Mauro Santayana, ecoando artigo de Demétrio Magnoli na Folha de S. Paulo, escreveu no Jornal do Brasil em 30 de julho: “Solerte manobra para obter nova ordem imperial. Começando com as cotas, teríamos a humanidade retalhada em grupos hostis, dos brancos, negros, amarelos e índios”, etc. [*] Como se a humanidade tivesse vivido as últimas décadas, séculos, milênios em esplêndido estado de paz e concórdia).
[*] A se acatar a versão dada no verbete “affirmative action” da obra The Oxford Companion to United States History, organizada por Paul S. Boyer, a primeira vez que se usou a expressão foi em 1935, no governo de Franklin Delano Roosevelt, com o sentido de que as agências governamentais deveriam evitar toda discriminação contra afro-americanos. Talvez tenha sido pouco, mas foi parte do que levou muitos negros americanos a chorar sentidamente a morte de Roosevelt, dez anos depois. “Em 1964, após anos de protestos dos negros, o Congresso aprovou o Civil Rights Act, um marco legislativo que, entre outras coisas, criou novas agências dirigidas por autoridades empenhadas em levar minorias para a corrente principal da vida americana”, diz o texto, que dá conta das controvérsias suscitadas e, sem histeria, registra: “Ao se encerrar o século XX, parecia improvável que o debate sobre ação afirmativa pudesse chegar a termo no horizonte visível”. No Brasil, ele mal começou, e começou mal. Mas vai melhorar.
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