A repórter e colunista da Folha de S. Paulo Eliane Cantanhêde aponta como fator principal que levou a uma apuração jornalística deficiente dos problemas de controle de tráfego aéreo no Brasil o corte feito nas redações devido a problemas econômicos das empresas. Mas mostra que isso não impede uma apuração correta, como foi a da Folha no caso do acidente com o Boeing da Gol.
O episódio revela uma deficiência de apuração?
[O trecho abaixo foi mal editado por mim, Mauro. O tempo presente usado pela entrevistada refere-se ao que ocorre num dado período histórico marcado pela desvalorização cambial de janeiro de 1999. O baixo crescimento também não é um fenômeno específico do momento atual, mas continuado.]
Eliane Cantanhêde – A imprensa, principalmente a escrita, trabalha com cada vez menos gente, eu imagino que deve ter ocorrido um corte de um quarto das redações nos últimos anos. Com menos papel, também. Isso reflete um pouco da crise que vem da desvalorização cambial. Há uma economia que não cresce, portanto uma queda de receita, e se paga tudo em dólar – papel, tinta, os insumos da imprensa escrita são todos pagos em dólar –, a despesa aumentou muito. Com esse desequilíbrio, as empresas de comunicação fizeram muitos ajustes, cortes, e não há gente para cobrir todas as áreas.
Desse ponto de vista, o dólar melhorou muito para as empresas, nos últimos anos.
E.C. – Quando começou a melhorar, as redações já estavam muito enxutas, as sucursais, as sedes, as editorias. Tudo muito enxuto, não há gordura. Não se dispõe de jornalistas que possam ficar correndo por fora e apurando áreas que são muito fechadas. Controle de tráfego aéreo, até porque tem uma forte vinculação militar, sempre foi controlado no Brasil pela área militar, é fechado, é uma questão considerada de segurança, e não se tem acesso. Seria preciso empregar repórteres que fossem especialistas na área, que tivessem muitas fontes lá dentro, que fossem fazer um trabalho específico. E na verdade o dia-a-dia vai consumindo os esforços das redações, e a gente acaba vendo essas coisas passando e não pulando nelas como deveria. É uma deficiência, sim, e não é de nenhum órgão específico, mas de uma conjuntura.
A Folha saiu-se bem na cobertura da tragédia do avião da Gol.
E.C. – Fiquei orgulhosa por ter participado desse trabalho de equipe da Folha, a edição em São Paulo, a secretaria de Redação, a direção de Redação em São Paulo, a editoria de Cotidiano, a sucursal de Brasília, fomos muito cautelosos e ouvimos todas as partes o tempo inteiro. No início, como uma das partes é americana, e a gente sabe que existe um sentimento antiamericano no mundo, não é nem no Brasil, e que foi até muito aguçado pela crise do Iraque, Bush/Iraque, acho que algumas autoridades vislumbraram uma chance de dizer: “Olha, os pilotos americanos fizeram tudo errado, o avião Legacy estava todo errado, e a culpa é deles”. Uma coisa que puxava mais pelo patriotismo, pela passionalidade, do que pela responsabilidade, pelo pragatismo, e pelo bom jornalismo, que exige ouvir todos os lados.
Acho que a Folha foi o primeiro jornal que disse assim: “Basta, gente. Pára, vamos com cautela nessa história, porque é uma questão técnica, não é uma questão de patriotada”. E foi engraçado porque no mesmo dia saiu o editorial da Folha, e eu não sabia do editorial da Folha, e saiu uma coluna minha dizendo isso: “Olha, linchamento, só porque os caras são americanos, não”. E estava todo mundo numa tendência assim: “O Legacy estava errado, os pilotos estavam errados”.
O que lhe permitiu ter uma visão mais abrangente do assunto?
E.C. – Naquele momento eu tive um almoço com a cúpula da Aeronáutica, botando as coisas num patamar bem equilibrado, fui ao Rio conversar com advogados brasileiros e americanos e com um dos donos da Excel Air, a dona do Legacy. Ao mesmo tempo tivemos uma boa cobertura do lado dos controladores, tivemos repórter cuidando especificamente dos controladores. O tempo inteiro nós tentamos e tivemos contato com a Gol, também. Enfim, tentamos abordar todos os lados sem parti-pris, que é o mais importante.
Tem cabimento sair correndo a dizer, nesse como em outros casos, quem foi “culpado”?
E.C. – Quem somos nós, repórteres, para ter a solução de um acidente aeronáutico em dois dias? Teve jornal botando em manchete: a culpa é do Legacy. Como, “a culpa é do Legacy”, dois dias depois? Como a gente foi vendo ao longo do tempo, e a Folha sempre um pouco mais à frente, na minha opinião, se comprova a tese de que acidentes aeronáuticos nunca têm uma causa só. É uma seqüência de fatores: fator humano, fator material, o fator tempo, o fator operacional. E foi exatamente isso: houve um conjunto de falhas. Não dá para crucificar ninguém. A gente erra, mas vai corrigindo, afunilando as informações. Quando foi divulgado o relatório da Comissão Técnica, eu acho que ficou claro que nós saímos muito bem, confirmaram-se muitas coisas que nós fomos dando. E foi um aprendizado. Hoje no Brasil todo mundo fala em “transponder” como se fosse de uma intimidade enorme da gente, o sistema RVSM, o vôo isso, o vôo aquilo. Porque a gente foi aprendendo, foi lendo, foi ouvindo. Houve uma interação enorme, via internet, com pilotos do país todo, com controladores. Foi uma cobertura que me deu e tem me dado muito trabalho, mas que também me trouxe satisfação profissional.
Eliane Cantanhêde participa do programa de hoje [5 de dezembro] do Observatório da Imprensa na televisão, com Alberto Dines, que abordará a cobertura jornalística da tragédia do Boeing da Gol. Na TV Cultura de São Paulo, às 23h40. Na TVE, mais cedo e ao vivo, às 22h40.