Chama-se rendition [entrega, devolução] a prática do governo Bush de transferir clandestinamente a terceiros países, para serem brutalmente interrogados, suspeitos de terrorismo capturados pelos serviços americanos de segurança. Turquia, Paquistão, Egito, Jordânia, Polônia e Romênia são apontados como alguns dos países onde os Estados Unidos terceirizam a tortura. Segundo um colunista, é como se Washington contratasse matadores de aluguel.
Guardadas todas as óbvias proporções, foi o que fizeram sábado no Rio de Janeiro um tenente, um sargento e um soldado do Exército, com a presumível cumplicidade de outros camaradas – ao todo 11 estão presos. O trio entregou três moradores do morro da Providência, de 17, 19 e 24 anos, a traficantes que operam no morro da Mineira para que lhes aplicassem um “corretivo”, ou dar-lhes “um susto”. Foram torturados e mortos.
Pelo que se apurou, os militares detiveram os jovens ao descer de um táxi, vindos de um baile. Estavam com uma moça. Eles protestaram por ser revistados. O tenente os prendeu por desacato. Levou-os ao quartel que funciona como base da operação Cimento Social, de melhora das moradias na Providência. O capitão que respondia pela Delegacia Judiciária Militar do quartel entendeu que não houve desacato e mandou os captores levarem os detidos de volta.
Dezenas de pessoas viram os militares chegando, fardados, numa viatura do Exército, para entregar as suas vítimas aos traficantes. O tenente disse a um deles que lhes trazia “um presentinho”.
Além da monstruosidade, chama a atenção, primeiro, que o tenente, sentindo-se desatacado, não tivesse levado os jovens a uma delegacia de polícia civil; segundo, incomparavelmente pior, que militares do Exército tivessem relações amistosas o suficiente com uma facção criminosa a ponto de recorrer a ela para que lhes prestasse um serviço.
Tudo isso está nos jornais do dia. Mas, entre os principais, só a Folha e, sobretudo, o Globo, com a melhor cobertura da tragédia, trataram do porquê do envolvimento do Exército com um projeto – o Cimento Social – sugerido pelo senador Marcelo Crivella, do PRB e conduzido pelos ministérios das Cidades e da Defesa.
A Folha revela que o Comando Militar do Leste, apoiado pelo Comando do Exército, foi contra a participação fardada, para não expôr a tropa a situações de risco desnecessário. Mas o comandante da Arma, general Enzo Peri “não teve margem para negociar”.
O jornal apurou que “prevaleceu a decisão política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se comprometeu a apoiar a idéia de Crivella, aliado federal e pré-candidato a prefeito, que ganhou visibilidade para seu projeto paralelo ao das obras do Estado (aliado ao Planalto) ou da prefeitura (de oposição).
No Globo, sob o título “Politização trágica”, o colunista Merval Pereira dedica a isso o seu espaço na edição de hoje. Trechos:
”O uso político do Exército para apoiar um projeto assistencialista do candidato a prefeito do Rio pelo PRB, o bispo Marcelo Crivella, no Morro da Providência, está na origem de uma tragédia comparável, na história da disputa do Estado com grupos criminosos pelo controle territorial, à chacina da Candelária ou ao massacre de Vigário Geral.”
”O grave dessa história macabra é a constatação de que os 11 militares presos, inclusive um oficial, já haviam introjetado a ordem vigente nos locais do Rio dominados por traficantes de drogas ou milícias e já estavam trabalhando com as regras da ilegalidade.”
“O marco legal da atuação das Forças Armadas teria que ser definido por uma legislação própria, cuja apresentação para debate o ministro da Defesa, Nelson Jobim, havia anunciado ainda para este ano, para ser aprovada pelo Congresso até o fim da legislatura. Seria preciso que a nova legislação definisse os cenários de emprego das Forças Armadas, o dimensionamento das tropas, sua capacitação específica, para que a sua utilização fosse efetiva, analisam os especialistas no assunto.”
“No entanto, nada disso aconteceu na ação do Exército para apoio do projeto Cimento Social, do bispo Crivella, que teve uma verba de R$ 12 milhões do Ministério das Cidades. A associação de moradores denunciara que os candidatos [ao benefício] estavam sendo escolhidos pela preferência religiosa, isto é, os adeptos da Igreja Universal, origem do bispo Crivella, tinham prioridade na contratação com o dinheiro oficial.”
“No fim de maio, o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, respondendo à indagação numa audiência na Comissão de Segurança da Câmara, surpreendeu a todos afirmando que também gostaria de saber o que o Exército estava fazendo no Morro da Providência, pois jamais fora comunicado.”
“Com esse esquema irresponsável, acabaram aproximando o Exército do tráfico […].’
O Globo também abriu espaço na página de Opinião para outro ângulo da barbaridade, abordado pela professora Elizabeth Süssekind, da PUC-Rio, no artigo “A soldo dos criminosos”. Trechos:
“Como é possível que onze militares, presente a cadeia imediata de comando de três sargentos e um tenente, a soldo de criminosos, pratiquem crime como esse, abertamente, pisando com os coturnos, que nós todos compramos, sobre toda a legislação do país? Que jurisdição teriam sobre a região? Com que simplicidade acabam covardemente com a vida de pessoas e detonam a imagem do Exército ao qual servem e devem? Não prestam contas do que fazem, de onde estão, da munição gasta, do percurso do veículo oficial? Entendiam que tudo ficaria por isso mesmo, atribuindo-se às vítimas, simplesmente, o `desacato´ as suas excelsas e inquestionáveis autoridades? Trata-se de mais uma modalidade de domínio do crime sobre o Estado.”
“Moradores de comunidades pobres pouco contam, seus direitos não são reconhecidos, não se dá crédito ao que alegam, seus argumentos não têm repercussão, vivem de se explicar, de tentar mostrar o que não são. Criminalizados antecipadamente, são caçados indistintamente, porque são pobres, são negros, a educação que se lhes permite é escassa e incompleta, moram em lugares onde só pobres moram. E porque são obrigados a conviver com criminosos, a obedecer a suas imposições. O poder local se reveza entre adolescentes-traficantes e adultos milicianos, fregueses da adesão de policiais que chantageiam e ameaçam colegas e superiores, cobrando inaceitável silêncio e complacência, com o que se mantêm imunes, desafiadores, donos de pedaços da cidade que ajudam a partir.”
Pena que o editorialete do jornal – meras 100 palavras – não vá além do óbvio ululante, dizendo que o episódio “é grave, extremamente grave” e que os responsáveis devem ter punição “tão imediata quanto exemplar”. Como seria de prever, o Globo invoca implicitamente a teoria da “maçã podre, ao decretar que se tratou de “caso pontual, e não do aterrador contágio de uma corporação com atribuições constitucionais de salvaguardar as instituições.
Decerto, não se pode considerar comprometida a corporação – os 250 efetivos em má hora acantonados no Morro da Providência para fazer o que não lhe compete. Mas a verdade é que a imprensa não sabe a extensão do “aterrador contágio”. Será que a praga da promsicuidade com o crime pegou apenas aqueles onze? Tomara que sim – mas a dúvida é legítima.