O que tinha tudo para se transformar num tiroteio verbal entre dois ícones da imprensa norte-americana acabou dando oportunidade para que quatro jornalistas protagonizassem um caso exemplar sobre a questão dos direitos autorais no novo jornalismo que está surgindo da combinação entre o impresso e o virtual.
O episódio, ocorrido em meados de fevereiro, envolveu um artigo publicado no The New York Times, uma repórter da revista econômica Forbes , um jornalista independente e um critico da mídia, todos norte-americanos. O surpreendente é que ninguém processou ninguém por violação de autoria embora o artigo tenha se transformado em hit nas redes sociais sob a manchete: “Como a Forbes roubou um artigo do The New York Times e ficou com a audiência”.
O caso foi o seguinte: no dia 16 de fevereiro, o repórter Charles Duhigg publicou na revista dominical do The New York Times um artigo sobre como as empresas usam a internet para descobrir hábitos de consumo do publico. Era um texto de 40 páginas detalhando todas as técnicas usadas para inserir cookies nos computadores de clientes e com isso identificar o que eles compram, quando e onde. A reportagem é um resumo do livro The Power of Habit: Why We Do What We Do in Life and Business, que Duhigg está lançando em breve.
A repórter Kashmir Hill, da revista Forbes, resumiu o texto para cinco páginas e o publicou sob o título “Como a Target descobriu a gravidez de uma menina antes do pai dela”. Hill pegou apenas o lado mais atrativo do extenso trabalho de Duhigg e obteve espantosas 680 mil visitas na Web, em menos de dois dias. A coisa teria parado por aí se o jornalista independente Nick O’Neil não tivesse publicado no seu blog o post "Como a Forbes roubou um artigo do The New YorkTimes e ficou com toda a audiência".
O’Neil descobriu também que o artigo original de Duhigg recebeu apenas 60 elogios de leitores na página do Facebook, enquanto 12.902 disseram que gostaram do texto de Hill. O assunto ganhou ainda mais visibilidade quando Jim Romanesko, um dos mais lidos críticos da mídia eletrônica norte-americana, resolveu ouvir os três lados da história no texto “Repórter do NYT defende colega da Forbes acusada de roubar o texto dele”, contrariando a quase certeza de que o repórter do Times viria com tudo para cima de Kashmir Hill, processando-a por plágio.
O episódio é exemplar porque mostra duas visões surpreendentemente inovadoras do processo de reformulação das práticas e valores do jornalismo. Primeiro, uma repórter de uma revista respeitada reescreve uma matéria de um colega de uma empresa concorrente, explorando um ângulo novo. O texto original era marcado pela preocupação técnica sobre a voracidade informativa das empresas, enquanto o da revista partia de um caso humano (a gravidez da adolescente) para levar à discussão sobre o fim da privacidade. O título da segunda matéria também era muito mais chamativo do que o do texto original.
A remixagem de material jornalístico está deixando de ser um pecado mortal na imprensa, como mostra o caso NYT / Forbes — o que indica uma significativa quebra de paradigmas. Nas declarações a Romanesko, Duhigg não só elogiou o texto de Hill como também reconheceu que a matéria foi reescrita pensando no leitor online, coisa que ele não fez porque seu original estava orientado para o público de publicação impressa. Os dois profissionais mostraram num caso badalado como são diferentes as estratégias editoriais para a internet e para o impresso, e como os leitores não estão nem aí para o ego das empresas.
Tudo isso nos mostra também que há espaço para a diversificação dos formatos editoriais de uma mesma reportagem ou artigo. Nenhum é melhor do que o outro. São simplesmente diferentes e nem o fato de um ser mais lido ou mais elogiado do que o outro desmerece a qualidade do menos votado. Kashmir Hill foi muito honesta no seu depoimento a Romanesko ao dizer que se o texto de Duhigg não fosse tão bom ela não teria conseguido fazer também uma bela matéria. A repórter nunca escondeu que havia trabalhado sobre o texto de um colega e deu a ele todo o crédito merecido.
Este episódio mostra que a informação jornalística está se transformando num processo, onde um mesmo assunto pode ser tratado de maneira diversificada, sem que os profissionais coloquem a questão da autoria acima do produto final. Charles Duhigg investigou a invasão da privacidade do consumidor por empresas do varejo. Kashmir Hill descobriu um ângulo humano que havia ficado oculto na historia original e atraiu a atenção do público na internet. Nick O’Neill explorou a suposta apropriação indevida de um texto jornalístico e Jim Romanesko deu aos envolvidos a possibilidade de explicar porque contrariaram a expectativa geral de um bate-boca sobre plágio.
Uma lição do que pode ser o novo jornalismo.