Recife, 1961. Uma tarde por semana, filas imensas se formam diante de um sobrado relativamente modesto, às margens do Capeberibe, na Rua da Aurora, pouco adiante do célebre Buraco da Otilia, onde se comia a melhor galinha ao molho pardo do planeta.
Nessa tarde, o ocupante da casa, um homem à antiga, recebe pessoalmente, um a um, o que os gregos antigos chamava hoi polloi, o brasileiríssimo povão. Na agenda imemorial, pedidos de emprego, dinheiro, internações: que mais o povo pobre deste país tem a pedir a uma autoridade?
O homem ouvia com atenção todos quantos coubessem na jornada. Só não deixava que lhe beijassem as mãos. Ao seu lado, um funcionário anotava num caderno, a lápis, pedido, nome e endereço do pedinte.
O que acontecia com os pedidos eu obviamente jamais saberia. Mas lembro daquelas figuras de romance de Graciliano Ramos saíndo do sobrado, sede da Prefeitura do Recife, falando com lágrimas nos olhos de quem as tinha recebido – algo inimaginável em suas vidas. Era o Pai Arraia.
Lembro também do gringo que a tudo assistia bestificado. Era um repórter do Los Angeles Times. Ele já tinha o lide de sua matéria: ‘A revolution is starting in Brazil. Mr Miguel Arraes, the left-wing mayor of Recife…’.
São Paulo, 1962. Tarde de sábado no João Sebastião Bar, na mesma Rua Major Sertório dos celestiais inferninhos que não existem mais. Casa cheia para a feijoada espetacular do boteco idem do Paulo Cotrim das artes e da noite. Rádio ligado a pleno volume. De repente, a notícia esperada irrompe. ‘E atenção, terminaram as apurações da eleição para governador de Estado em Pernambuco. De virada na contagem dos votos, o vencedor é Miguel Arraes…’
O resto da notícia ninguém mais ouviu. A casa em peso cantava o Hino Nacional. A meu lado, Geraldo Vandré chorava convulsivamente. Não era o único.
Em algum lugar entre Brasília e São Paulo, a bordo do 737 da Vasp, 1985. A meu lado, o deputado federal Miguel Arraes me faz perguntas que não consigo responder porque não consigo ouvi-las. O quase setentão fala para dentro, roufenho e enrolado ainda por cima. O barulho dos reatores faz o resto. Tomamos, cada um, duas doses de uísque, embora nåo fosse o seu Johnnie Walker Black Label de todos os dias, a que atribuía a sua boa disposição e certeza de que teria vida longa.
Não me lembro se nos brindamos. Pelo sim, pelo não, saúde, governador.