A grande imprensa mundial se ocupou hoje das possíveis repercussões da foto de Saddam Hussein de cuecas na dianteira dos mais possantes veículos da frota de transporte de lama impressa de Rupert Murdoch, o inglês The Sun e o americano The New York Post.
A grande dúvida era como o mundo islâmico reagiria à imagem humilhante do ex-ditador iraquiano, preso desde dezembro de 2003, na primeira página dos abjetos tablóides que vendem milhões de exemplares nos seus países. Na expressão clássica, nu (ou quase) diante dos seus inimigos.
O próprio sub-porta-voz da Casa Branca, Trent Duffy, admitiu que “isso poderia ter um sério impacto”. Ele comparou as fotos às revelações também pictóricas das violências americanas no prisão de Abu Ghraib.
Fotos, no plural, porque nas páginas internas daqueles dois monumentos à imprensa de esgoto, saíram outras, menos impactantes, mas também do gênero “imperador caído, com pouca roupa”, como o classificou o New York Times.
Numa comunhão de idéias praticamente inimaginável em outras circunstâncias, um dos advogados de Saddam, Ziad Khasawneh, ecoou as palavras de Duffy sobre o parentesco das cenas com aquelas tiradas no inferno da casa de detenção de Bagdá construída no velho regime, operando desde abril de 2003 sob nova direção.
Para muitos comentaristas, a foto veio em péssima hora. Na mesma sexta-feira, o NYT dava duas páginas a um dos mais circunstanciados relatos das barbaridades cometidas por tropas americanas contra suspeitos de terrorismo no presídio afegão de Bagram.
O lide deixava claro o que conteriam as demais 6.032 palavras e 147 parágrafos da reportagem, baseada em documentos oficiais: “Mesmo enquanto o jovem afegão morria diante deles, os seus carcereiros continuavam a atormentá-lo”.
E a foto veio quatro dias depois que, sob tremenda pressão da Casa Branca e do Pentágono, a revista Newsweek se retratou da nota publicada na edição da semana anterior, segundo a qual interrogadores americanos em Guantánamo, para desmoralizar presos muçulmanos, jogaram na privada um exemplar do Corão e puxaram a descarga. (Veja “A credibilidade de um ultraje”, neste blog. Mais sobre a duvidoso erro – ou mancada – da Newsweek na edição do Observatório da Imprensa que irá ao ar na terça-feira, 24.)
Já que o Sun indicou que as fotos foram feitas (ou repassadas) por militares americanos sob cuja guarda o retratado se encontra – possivelmente mas não necessariamente no Iraque – o assessor adjunto de imprensa do presidente Bush disse que ele “quer ir ao fundo da questão imediatamente”.
Foi o que bastou para o tablóide dizer hoje, também na primeira página – e demonstrando mais uma vez o imenso talento dos editores do pasquim para o humor de beira de cais – que Bush “probes” (investiga, mas também testa, experimenta) “as cuecas de Saddam” e “promete: vou ao fundo disso”.
Não há dúvida de que a tomada e a entrega de fotos do ditador deposto violam as Convenções de Genebra sobre o tratamento a que têm direito os prisioneiros de guerra – o que Saddam indiscutivelmente é, à parte os monstruosos crimes que fizeram do seu regime uma das mais sanguinárias ditaduras da era contemporânea.
Mas há dúvidas sobre as consequências da publicação entre os iraquianos. Uma das melhores especulações a respeito que se terá lido hoje em qualquer parte do mundo está no pingue-pongue do sempre competente João Batista Natali, da Folha, com o craque em assuntos iraquianos Dilip Hiro, ensaísta indiano radicado em Londres. Só a idéia de ir atrás desse autor de 27 livros sobre Ásia e Oriente Médio é prova de competência.
Vale a pena ler a entrevista quanto mais não seja porque, segundo Hiro diz ter ouvido de fontes iraquianas, o secretário da Defesa Donald Rumsfeld, teria estado com o seu velho conhecido Saddam Hussein,como parte de uma suposta negociação para o fim da insurgência contra a ocupação. O preço a pagar seria poupá-lo da execução que certamente o espera.
Por outra razão, no caso, para entender a cabeça dos que fazem a cloaca chamada Sun, valeria a pena ler também a sua reação às críticas da imprensa mainstream britânica à sua mais recente façanha.
Numa espécie de editorial de 14 parágrafos – tipicamente de não mais de 3 linhas cada -, se lê que a mera idéia, levantada pela BBC, de que o tablóide humilhou Saddam é uma “absurda besteira” (em inglês soa melhor: “preposterous nonsense”). Ou representa uma “visão facciosa e poluída da vida” (!).
Isso porque Saddam é comparável a Hitler, Stalin, Pol Pot e Idi Amin. “Será que ele se importou com os direitos humanos dos 300 mil iraquianos que mandou matar? Ou com os presos que torturou? Ou com as mulheres que o seu filho violentou?”, pergunta retoricamente o editorialete.
Por esse critério, mostrar ao mundo Saddam de cuecas não é nada. Seria justo e legítimo aplicar-lhe o castigo bíblico do olho por olho: torturá-lo e violentá-lo antes de matá-lo com o mesmo gás que usou contra xiitas e curdos (enquanto, é bom lembrar, o governo dos Estados Unidos da América olhava obsequiosamente para o outro lado). E sem direito a um julgamento civilizado.
Taí. O jornalismo (com perdão da palavra) do Sun é muito pior do que sórdido ou asqueroso. É tão ou mais mata-esfola quanto os hidrófobos ratinhos da mídia brasileira.