Peço licença para voltar ao assunto que motivou a nota intitulada ‘De que servem os jornais’, publicada na última segunda-feira, 14. [Leia aqui.]
Trata-se do fato de a mídia impressa se valer muito pouco do instrumento de que precisa – e está a seu alcance – para enfrentar a barragem de informações instantâneas proporcionada pelas novas tecnologias de informação, em portais, sites, blogues e similares.
E peço licença para repetir o truísmo: nunca antes como hoje, nem mesmo quando a televisão se tornou para zilhões de pessoas a fonte primária de conhecimento do dia a dia em inumeráveis setores da vida, o jornal tem que bater o escanteio e correr para cabecear na área.
Isso significa noticiar e dar a perspectiva da notícia no corpo da própria matéria ou ao lado – sem deixar o trabalho para os comentaristas, colunistas e editorialistas. Porque não é a mesma coisa. Dar profundidade à informação não é, ou não é necessariamente, sinônimo de análise, opinião pessoal e tomada de partido.
Digo mais: minoritárias ou mesmo raras são as notícias de interesse que não possam ser levadas ao leitor com foco aberto. Não precisam ser daquelas de parar as máquinas ou ir para o trono da manchete de primeira página.
Na nota referida, usei o caso de duas noticietas que o jornal que as publicou perdeu a oportunidade de relacionar: uma previsão de definhamento do ex-PFL, porque o principal interesse que representa – o agronegócio – tende a se achegar ao governo por causa dos programas de biocombustível, e o dado sobre o crescimento das bancadas ruralistas no Congresso Nacional.
Hoje meu exemplo tampouco é de um fato arrasa-quarteirão. Mas que só um jornal teve a iniciativa, embora com um dia de atraso, de nele infundir dois dedos de reflexão.
Ontem, Estado e Folha, esta na primeira página, publicaram uma foto do governador paulista José Serra brincando de atirar com um senhor fuzil – o FN 762, de fabricação belga – usado pelos atiradores de elite da PM em casos de seqüestro.
Serra empunhou a arma como quem mira o alvo numa homenagem aos PMs mobilizados para acabar com um espetáculo recente do gênero, em Campinas, que durou 56 horas, fez a festa do sensacionalismo disfarçado de jornalismo da televisão – e teve final feliz.
Trecho da cobertura do Estado: ‘Ao ver a repórter fotográfica Vivi Zanatta, da Agência Estado, o governador brincou. Apontou o fuzil na direção dela e simulou tiros: pá, pá, pá. Depois explicou: ‘Nunca segurei uma arma de fogo e nunca disparei um tiro.’
Para o jornalismo de baixa criatividade, a história termina aí. Fotos estampadas, situação descrita, aspas acrescidas – página virada. Algo como ‘a cada dia a sua atribulação’.
De mais a mais, que importância pode ter uma brincadeirinha do governador que enfrenta problemas estes sim sérios? Uma peleja por causa do novo previdenciário estadual e está atolado até o pescoço por ter metido os pés pelas mãos no caso da autonomia financeira das universidades paulistas – o que só serviu para deixar os reitores em estado de guerra e exumar o esquerdismo radical de alunos e funcionários no câmpus da USP.
Sendo o que é, porém, a violência marginal e policial no Brasil de hoje, a simulação armada a que o governador se entregou decerto sem pensar duas vezes, não seria o caso de mirar mais fundo no factóide?
Foi o que fez hoje a Folha, na matéria ‘Imagem de Serra com arma provoca polêmica’. Com a ressalva que a polêmica não nasceu da imagem, mas da [acertada] decisão do jornal de ouvir quem de direito a respeito – o presidente do Movimento Viva Brasil, o diretor do Instituto Sou da Paz, o vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, um pesquisador do Ilanud [órgão das Nações Unidas para a prevenção da violência e tratamento do delinqüente] e uma pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Importa menos o que cada um disse do que a decisão jornalística de procurá-los para ventilar o problema – para ‘repercutir’ a notícia, desta vez no bom sentido da palavra.
A sensibilidade do jornal consistiu em ligar o nome à p´ssoa ou conectar os pontos – expressões que usei no meu outro texto. A Folha perguntou-se, implicitamente, se a foto é significativa. Chegou à conclusão que era. E foi apurar que significados ela poderia ter para os estudiosos da violência e os militantes das organizações surgidas para combatê-la.
Quando sustento que esse tipo de approach profissional deve balizar o trabalho de repórteres e editores, mesmo em caso de notícias aparentemente menores, e não ser terceirizada a colunistas, quero chamar a atenção para a diferença entre aprofundar informações e entregá-las ao opinionismo dos colunistas.
A prova de que a segunda abordagem não pode substituir a primeira está, por sinal, na própria Folha de hoje. No alto da nobre página 5 do caderno Brasil, território de caça do veterano Janio de Freitas, ele põe num mesmo saco Fernando Collor, Luiz Inácio Lula da Silva e José Serra.
Para ele, a coletiva do presidente foi um espetáculo collorido, em que o entrevistado exibiu auto-suficiência e falta de pudor para tanto elogio oco de si mesmo.
A encenação de Serra também: ‘Uma sujeição ao marquetismo leviano de Collor, da qual ninguém o suporia capaz, até alguns anos.’
Cada leitor que julgue as associações assacadas contra o presidente e o governador. Para mim, soam como correlações espúrias – mas minha opinião vale tanto quanto a de qualquer um. O ponto que interessa ao crítico de mídia é outro: como ficaria o jornal se a coluna de Janio fosse o único lugar na edição de hoje onde se comentaria o polêmico ato de Serra?
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