Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Simplificação e pressa emburrecem noticiário externo


Entre os muitos riscos do jornalismo na Internet é deixar-se levar pelo superficial e, na simplificação estimulada pela pressa, pelo imediato, limitar-se ao cosmético e esquecer o essencial. A edição de textos estrangeiros é ainda mais arriscada. Quanto mais importante for a fonte de informação, mais perigosa é.

À instantaneidade e à repercussão da publicação estrangeira – que rebate na avaliação do risco-país e na movimentação de grandes capitais, entre outros índices globais – une-se ainda, ao trabalho apressado, algumas manias e vícios nacionais, como o de amar falar mal de si mesmo.

O exemplo dessa simplificação pousou ontem, durante boa parte do dia, na primeira página do UOL, mas poderia ter se reproduzido em qualquer jornal ou revista. O fenômeno se repete sempre que predomina a simplificação. Em geral, basta empunhar um dos porretes comuns à maioria das redações e malhar uma das históricas mazelas nacionais, em ato de contrição. No caso de hoje, imola-se a ‘estrutura policial’ do Brasil como indutora da ‘impunidade no Brasil’.

Financial Times
Estrutura policial induz à
impunidade no Brasil

trouxe o link da home page, na primeira grande diferença entre tradução e original, escrito pelo correspondente Jonathan Wheatley. ‘Crime without punishment poses questions for Brazil ‘, diz, com variação abissal à solução do UOL. Uma cacetada a mais ou a menos na polícia brasileira não fará muita diferença.

No texto em português, para dar sentido ao título, a reportagem setoriza a razão da impunidade no Brasil e abre comm o mau trabalho da policia.
‘Segundo a reportagem, a estrutura dos serviços de segurança impede uma mudança. A rivalidade entre as polícias civil e militar, os baixos salários, a falta de treinamento, a corrupção e a violência são os fatores citados pelo jornal como entraves às investigações e aos julgamentos.’

No original, porém, a abertura remete para a prisão de Paulo Maluf e Flávio Maluf como uma cena ‘que muitos brasileiros imaginavam que jamais viriam’. Na seqüência, relata que ambos permaneceram 40 dias detidos e que, apesar das evidências, é improvável que os dois voltem a ser presos. ‘As quase infinitas possibilidades de apelar garantem isso’.

Como se vê, a reportagem original inclui não só a polícia, mas também a Justiça brasileira e todo o aparato constitucional como indutores da impunidade.

O problema policial que abre o texto brasileiro está no sexto parágrafo do original.
O repórter britânico observa que criminosos menos conhecidos também escapam facilmente da pena e mergulha no sentimento nacional de impunidade. Por incrível que possa parecer para quem leu o texto do UOL, o original, depois de expor mazelas da polícia brasileira, diz que as coisas estão mudando, e para melhor, sem deixar de apontar seus graves defeitos.

A superficialidade dada à edição do material do FT – tanto mais grave porque vem assinado pela BBC Brasil – seguramente se deve à ignorância sobre um detalhe da lei brasileira ressaltado pelo jurista Miguel Reale Jr, há algumas semanas, no O Estado de S.Paulo. A propósito de ilustrar que as operações da Polícia Federal na Daslu e na Schincariol, na verdade, não passaram de espetáculos de pirotecnia, ele escreveu que a intervenção policial de nada valeu, pois os supostos crimes cometidos pelos empresários, antes de resultar no processamento penal dos réus, terão de ser confirmados em sentenças de outros tribunais. Em resumo, para correr o risco de ir para a cadeia porque superfaturou importações, em claro indício de lavagem de dinheiro sujo, o empresário bandido antes deve ser condenado em outras varas.
A benevolência dos recursos e a permissão para chicanas são convites à impunidade. Vide o exemplo das penas por crimes eleitorais. Não há um larápio sequer puxando ferro.

É torcer para que algum jornal respeite o original na edição impressa de amanhã.