Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Só se salvou a carranca do vice

A cara amarrada do vice-presidente José Alencar, em todas as fotos nos jornais de hoje que o mostram entre um Lula e um Collor risonhos, no fim da tarde de ontem no Planalto, é o único lampejo de integridade na cena constrangedora.

É certo que as servidões da política incluem atos que em outras circunstâncias os protagonistas se poupariam de praticar.

Collor se elegeu senador por um partido, o PTB, que integra, com mais 10, a vasta coalizão majoritária [embora o seu presidente seja o cassado Roberto Jefferson, cujas denúncias ameaçaram balançar o primeiro mandato de Lula].

E Lula, ao aceitar receber em palácio a bancada de senadores petebistas, não poderia barrar o ex.

Ainda assim, beiram a indecência as cenas explícitas de bonomia e camaradagem entre o anfitrião e o mais afamado de seus visitantes senatoriais. Graças aos repórteres Eduardo Scolese e Pedro Dias Leite, da Folha, ficou-se sabendo do encontro algo além das trivialidades trocadas sobre a posição dos móveis no gabinete presidencial, que o resto da mídia noticiou.

‘Cumprimentaram-se com apertos de mão, um abraço e tapas nas costas, na entrada e na saída’, relataram. Eles apuraram também que ao final da conversa de quase duas horas – duas horas! – Lula comentou com Collor que ‘essa audiência demorou metade do tempo do seu discurso na semana passada no Senado’. Ao que o outro respondeu: ‘Lula, a nossa relação é tão respeitosa, que me permito usar um discurso feito por você na semana passada’, embora não tenha ficado claro do que ele estava falando.

‘Nunca fomos inimigos’, declarou Collor aos jornalistas. E teorizou:

‘Quem está na vida pública sabe diferenciar muito bem o que são passagens no calor e no fragor de uma campanha eleitoral e o que são passagens de um tempo normal.’

É. Pode ser. Mas nenhum outro político nacional, pelo menos desde o fim da ditadura, fez o que ele fez ‘no calor e no fragor’ da campanha de 1989.

Pagou a uma ex-namorada de Lula, Mirian Cordeiro, para ela dizer – e os dizeres serem usados no horário eleitoral, dias antes do debate entre ambos na TV – que o petista, informado de que estava grávida, a pressionou para abortar. [Da relação nasceu uma menina, Lurian.]

Quando Collor reinava em Brasília, um velho motorista alagoano me disse um dia em Maceió: ‘Collor? Conheço desde menino. Nunca presteou.’

Pois bem. O que Lula sentiu ontem na alma e no fígado quando posava, sorridente, sentado à mesma mesa que o autor da infâmia presumivelmente imperdoável, ou quando trocavam palavras gentis e tapinhas nas costas, é problema exclusivamente dele. O que Mirian, Lurian e a família da Silva sentiram ao ver as imagens acachapantes – nas quais, repito, só se salva a carranca do vice – é problemas delas.

Mas o simbolismo do fato – como exemplo de que em política nada se preserva e tudo se permite, por pairarem os seus praticantes acima dos valores que supostamente devem guiar a conduta dos cidadãos comuns -, esse simbolismo é problema de todos nós.

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