Depois da madrugada mais silenciosa em muitos e muitos anos na cidade de São Paulo – mais ainda do que a de ontem, retratada nos jornais de hoje –, a manhã começou com um ruído normalmente irritante mas agora motivo de alívio e satisfação: o barulho dos ônibus. O funcionamento das cidades é pré-condição para que se entenda o que aconteceu em São Paulo nos últimos dias.
Hoje haverá cobertura mais ampla dos prejuízos causados às diferentes funções da cidade: comércio, indústria, serviços, entre esses as escolas e hospitais.
São Paulo sem trabalho em dia útil é uma tristeza. Uma tremenda crueldade, porque atinge o etos da metrópole dinâmica. Deixa muita gente sem referencial.
Os bandidos tiveram dias de glória. Resta saber como as autoridades cumprirão seus deveres, daqui por diante. Quanto valerá sua lógica corporativista, quanto valerão o interesse público, a dimensão social.
A tarefa de medir isso é da mídia. Há uma abundante cobertura nos jornais, e num primeiro exame cheia de informações relevantes. Mas é preciso mais. É preciso reformular a cobertura de cidades nos jornais paulistas. No mínimo. Deslocar alguns dos melhores repórteres e editores para reforçar essa mudança de foco e de métodos.
Para começar, é preciso fazer uma radiografia completa e minuciosa do que aconteceu nas prisões. Em cada uma. Só assim se conhecerá a extensão e a natureza efetiva dos problemas agora, espera-se, incontornáveis. Acompanhar a reorientação e o reequipamento da polícia e da administração penitenciária. Acompanhar a remodelação do funcionamento da Justiça e da legislação (nessa ordem, porque os senhores magistrados, na sua inacreditável insensibilidade, gostam de se abrigar sob o manto de obrigações legais). Acompanhar o escrutínio dos advogados que a OAB e outras entidades deveriam fazer e não fazem. Acompanhar as conexões políticas. Tentar impedir que qualquer candidato vinculado ao crime organizado seja apresentado ao eleitorado, e, se concorrer, que seja eleito.
São muitas tarefas para uma imprensa já desbordada. Mas para isso existe o poder de síntese, atributo do bom jornalismo. Não se ‘esgota’ um assunto, isso é tarefa da academia – por sinal, vergonhosamente ausente, em São Paulo, desse território -, mas se oferecem ao cidadãos instrumentos para formarem suas próprias opiniões e convertê-las em vontade política. Para chegar à simplicidade é preciso passar pela complexidade. O caminho que fica apenas no que é simples leva ao que é simplório.
Todas essas tarefas precisam ser condensadas sistematicamente numa pergunta, para a qual se devem buscar respostas a cada etapa da caminhada: quem avançou? O Estado democrático de direito ou o crime organizado?
* * *
Do leitor Elias Ribeiro, comentário recebido há pouco (11h30 da manhã):
‘Pode ter havido sensacionalismo em alguns órgãos de imprensa, mas dizer que o caos que SP viveu foi fruto de boataria é um ABSURDO!!! Houve sim toque de recolher; as lojas fecharam porque OS POSTOS POLICIAS simplesmente DESAPARECERAM da cidade. A polícia, para se proteger, deixou a população ao Deus-dará. Os ônibus não circularam porque a polícia não foi capaz de dar segurança às empresas, e a prefeitura nada fez para amenizar a situação (como acontece em momentos de greve). A segurança pública, acuada, não existiu para a população no dia de ontem. Dizer que a situação se normalizou por conta da ação da polícia é achar que acreditamos em Papai Noel.’
O leitor toca num ponto crucial, em torno do qual talvez resida a maior falha da mídia nestes dias. Não informou com clareza a retirada da polícia das ruas (salvo tropas da Rota e homens do Deic) após a primeira onda de assassinatos. Nesse episódio, relatado às 10 da manhã de hoje (16/5) na Globo pelo reporter Valmir Salaro, talvez se revele mais claramente como, para usar a metáfora da guerra, o crime organizado avançou e o Estado recuou.
E, claro, recuou novamente ao negociar o fim das rebeliões e dos atentados terroristas, mas nesse caso pode ter sido uma decisão sensata, destinada a recuperar fôlego.
Se se tratasse literalmente de uma guerra, a tropa poderia recuar, empreender uma retirada, fazer qualquer manobra tática que seus comandantes considerassem adequada. Mas tirar a polícia ostensiva das ruas significava deixar os cidadãos como primeira linha para o ataque dos bandidos. A menos que tenha havido algum tipo de acordo: se tirarmos os PMs (depois de vinte já assassinados) vocês prometem não atacar ‘civis’?
Também é preciso tomar cuidado com a contagem das vítimas, porque alguns não estavam a serviço, mas fazendo ‘bico’. Igualmente, uma parte da violência pode ser computada dentro da dose cotidiana de criminalidade que aflige São Paulo. O PCC não tem comando sobre todos os criminosos do estado de São Paulo. Se tiver, saiamos de baixo.
* * *
Um leitor que forneceu corretamente todos os seus dados pede que seu comentário seja publicado mas ele não seja identificado. Não é possível. Só publicamos comentários com nome e sobrenome e endereço válido de correio eletrônico. No Observatório da Imprensa não se publicam textos anônimos.
* * *
Às 15h15 (16 de maio),o leitor Marcio Tadeu escreve:
‘É necessário um trabalho de inteligência bem elaborado, se possível coordenado por forças federais, que estão menos passíveis de corrupção. A ajuda do Exército em SP é conpletamente sem propósito, se 138.000 soldados da PM estadual [são 90 mil na ativa e os outros aposentados; M.M.] não dão conta do recado, não serão mais 1.000 ou até 4.000 que ajudarão, é necessário sim que o federal aja da forma acima, na inteligência, e também puxe a responsabilidade da carceragem dos mais perigosos com os famosos presídios federais, que nunca saem do papel. Temos que aniquilar alguns menbros chave deles e acabar com a comunicação, eliminando a maioria das centrais clandestinas. Sem direção nem comunicação, são simples baratas tontas prontas para serem pisadas.’
Não é tão fácil ‘pisar as baratas’. Para começar, a PM tem 90 mil homens. Isso significa que 7.200 estão permanentemente fora de ação (férias, licenças, doenças afetam na média 8% de qualquer corporação). O saldo, de 82.800 homens, deve ser dividido por três (três turnos de oito horas): 27.600. Daí, descontar os envolvidos em atividades administrativas (não sei a porcentagem). Em seguida, constatar que o estado de São Paulo tem 600 municípios, algo assim. Na verdade, na Grande São Paulo não há muito mais de 6 mil homens da PM em ação a cada momento, se houver tudo isso [acréscimo em 17/5: os turnos não são uniformes, há horários com mais gente na rua, outros em que quase não há ninguém]. A esses juntem-se os homens da Polícia Civil e das Guardas Municipais.
Sem ilusões.
Na média dos países, o número de infratores da lei se situa em torno de um por cento. Aplicado o número a São Paulo, seriam 400 mil pessoas. Dessas, 130 mil estão presas. Mas do número total deve-se descontar um enorme contingente de indivíduos que nem sabem dar tiros. Também não é um exército tão assustador.
O que funcionou foi: de um lado, a coordenação dos bandidos, permitida sobretudo pelos sucessivos recuos da administração penitenciária; de outro lado, a descoordenação das polícias. Cada uma segue sua lógica corporativa.
Cuidado com a idéia de que forças federais são menos sujeitas à corrupção. Basta ver que em recentes operações a PF trouxe de fora os homens que efetuariam prisões em São Paulo. Se a turma local soubesse, os suspeitos seriam avisados e fugiriam.