Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tempos de pós-jornalismo

No último sábado, 19, dois dias depois de se confirmar que o presidente Lula indicaria o advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli, para o Supremo Tribunal Federal, a imprensa em peso noticiou que ele foi condenado em primeira instância pela Justiça do Amapá por ter sido escolhido (com um sócio), em 2001, para defender o governo estadual e o então governador João Capiberibe em licitações consideradas ilegais.

O leitor não ficou sabendo como a informação chegou aos periódicos. É possível que tenha sido repassada por interessados em deixar Toffoli em situação difícil. Como manda a lei, ele terá de passar por uma sabatina no Senado – normalmente, uma formalidade.

O caso faz lembrar outro episódio, este nos Estados Unidos, de divulgação simultânea e imediata de notícias constrangedoras para um indicado para a Corte Suprema. No dia 26 de maio passado, minutos depois de o presidente Barack Obama anunciar a escolha da juíza Sonia Sotomayor, de origem portorriquenha, para o mais alto tribunal do país, todas as grandes redes americanas de TV puseram no ar dois clipes – um de 2001, outro de 2005 – em que ela aparece falando o que talvez não devesse.

No mais antigo, Sonia dá a entender, entre risos, ser favorável a um Supremo que “faça a lei”, em vez de se dedicar a interpretá-la e determinar a sua aplicação.

No mais recente e que ficou mais famoso, diz que, graças a sua experiência de vida como “mulher latina”, teria melhores condições do que um “homem branco” para exercer a função de juiz.

A divulgação praticamente instantânea e rigorosamente idêntica dos dois vídeos chamou a atenção de um veterano jornalista, Mark Bowden. “Não é uma estranha coincidência”, ele se perguntou, “todas as grandes emissoras, cada qual trabalhando por conta própria, terem obtido antecipadamente o mesmo material?’

É verdade que a imprensa se põe a levantar, ou atualizar, a ficha de possíveis ocupantes de altas funções de governo e Estado assim que os seus nomes começam a ser mencionados – para divulgá-la assim que a indicação se consumar.

É o que poderia ter acontecido no caso de Sonia, mas não foi, apurou Bowden. Na reportagem “A matéria por trás da matéria”, publicada na edição com data de capa de outubro da revista The Atlantic, ele conta que as imagens com as declarações polêmicas da juíza foram garimpadas nos desvãos da internet não por esforçados repórteres, mas por um talentoso blogueiro conservador, e repassados à mídia por uma organização igualmente conservadora. (Sonia Sotomayor, ao longo de uma brilhante carreira de 30 anos que a tinha levado ao Tribunal Federal de Recursos no Estado de Nova York, era tida como uma militante de esquerda.)

Até aí, tudo bem. Os clipes não eram falsos, assim como não são falsas as revelações sobre a condenação de Toffoli no Amapá – a procedência das acusações contra ele é outra história.

Nem constituem propriamente novidade, em qualquer lugar, iniciativas de partes interessadas de preparar e entregar à mídia dossiês contra figuras públicas. O problema são os ativistas políticos – de todas as tendências – fazendo o que compete às redações, e as redações entrando no jogo.

Mesmo quando a matéria-prima é verdadeira, um dossiê é faccioso: não dá contexto, nem traz o outro lado, como faria um perfil jornalístico honesto, preocupado em dar uma visão matizada do personagem. E as falas da juíza foram exibidas em estado bruto, sem uma coisa nem outra. Material de propaganda (adversa), portanto. O pior é que nenhuma das redes jogou limpo com o público, esclarecendo como tinham tido acesso aos clipes. Ficou a impressão de que se tratava de apuração jornalística própria.

Mais perturbador é o fato de os blogueiros rastreados por Bowden se considerarem jornalistas – e não militantes políticos motivados por uma causa.

Quantos dos que dizem “jornalistas-cidadãos” não são exatamente isso?

A causa pode ser a mais luminosa concebível, mas jornalismo e ativismo são atividades distintas. Antigamente, o que levava um jovem a bater às portas de uma redação era a oportunidade de descobrir e o desejo de contar como o mundo funciona, não a chance de fazer proselitismo.

Bowden tem razão quando escreve que a história dos vídeos da juíza ilustra uma consequência do colapso – a palavra é dele – do jornalismo profissional: “O trabalho que costuma ser realizado por repórteres e produtores é agora feito rotineiramente por operadores políticos e ideólogos amadores de uma orientação ou outra, cuja meta não é educar o público, mas vencer.” Politicamente, é claro.

Ou nas palavras do blogueiro que escavou as falas que deixaram a juíza mal na fita: “Eu estava procurando deliberadamente uma coisa que repercutisse” – não porque ajudaria o público entender a pessoa, mas porque corroboraria a versão de sua alegada militância.

É o que Bowden chama de “pós-jornalismo”. Nesse universo, o negócio dos participantes é dar força para a sua turma. O resultado é um círculo vicioso: os blogueiros escrevem para reforçar as convicções daqueles que pensam como eles – e estes os leem precisamente por isso.

Essa lógica de confronto em que a verdade conta menos do que a vitória explica, pelo menos em parte, porque a hostilidade é tão disseminada na blogosfera. Os que pensam diferente de nós estão sempre errados – e estão errados, afinal das contas, porque não prestam.

No pós-jornalismo, há cada vez menos espaço para o repórter que pensa e fala por si, lamenta Bowden. “Um repórter cujo maior objetivo é proporcionar uma compreensão mais profunda dos fatos e que aspira a persuadir. Isso requer no mínimo ser visto como justo e confiável por aqueles – e esse é o ponto-chave – inclinados a discordar dele.”

Eis por que a voz honesta e desinteressada do verdadeiro jornalista “é portadora de uma autoridade” que um militante assumido de esquerda ou direita jamais terá.

Mas de que vale essa credencial para um público polarizado entre “nós” e “eles”?