Em uma dúzia de densos parágrafos, a reportagem de Andréa Michael, “Projeto definirá ataques como ato terrorista”, na Folha de hoje, mostra que vão muito além do que a vista alcança de imediato os problemas de uma eventual legislação destinada a punir como atos de terrorismo manifestações de criminalidade, como as que de tempos em tempos barbarizam as populações de São Paulo e do Rio.
Faz tempo – um ano e meio – que o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI) trabalha num projeto de lei que defina terrorismo, sem o que de nada significará juridicamente o fato de o Brasil já ter assinado mais de uma dezena de convenções internacionais de combate ao terror.
Mas o trabalho se tornou notícia desde que o presidente Lula, no dia da segunda posse, teve a idéia infeliz de chamar de terroristas os bandidos que (não pela primeira vez) infernizaram os cariocas na última semana de 2006, revivendo do outro lado da Dutra os sofrimentos que em meados do ano o PCC causou aos paulistas.
Lula equiparou a violência urbana ao terrorismo ao falar de improviso no parlatório do Planalto, depois do discurso formal no Congresso. É o caso de dizer que ele também pensou de improviso, misturando fatos e conceitos que não devem ser confundidos.
No dia seguinte, na primeira entrevista do segundo mandato, afirmou que não se podem aceitar, como se fossem “normais”, os mais novos ataques medonhos da bandidagem a ônibus e edificações, que deixaram 19 mortos no Rio.
Tem razão nesse ponto, mas só nesse ponto. Descontado o fato de que o melhor remédio contra o crime não é o tamanho das penas previstas para os criminosos, mas a inevitabilidade do castigo, chama a atenção na matéria da Folha o fato de que a lei de crimes hediondos, que se aplica aos autores daquelas selvagerias, pode ser tão ou mais punitiva do que o projeto a ser enviado à Casa Civil em março – o que não é lá muito provável.
Além disso, informa a reportagem, “as dificuldades de chegar a um texto final começam por separar atos praticados por organizações criminosas, que buscam obter lucro, e por grupos terroristas, que têm objetivos políticos”.
Como diz o general Jorge Armando Félix, ministro-chefe do GSI, “se você enquadra essas organizações criminosas como terroristas, você dá um cunho político a elas, mas isso o governo não vai fazer. São um bando de criminosos.”
A matéria da Folha é até agora a mais bem focada discussão do problema desde que Lula usou impropriamente a expressão “terrorismo” para se referir às ações selvagens do crime organizado. Mas outros textos também ajudam a colocar as coisas nos devidos termos.
Anteontem, a agência Reuters divulgou na internet uma reportagem de Maurício Savarese, intitulada “Lula erra ao comparar crime a terrorismo”, dizem especialistas”. É acessível aos assinantes da UOL pelo link http://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/01/02/ult1928u3595.jhtm
E hoje o articulista Rolf Kuntz publicou no Estado o engenhoso comentário “O melhor negócio do Brasil”, assinalando o que distingue a violência terrorista do crime comum, para concluir que não será equiparando o criminoso ao terrorista que os seus atos serão combatidos.
”Nenhuma política dará resultado, num prazo tolerável para a sociedade, enquanto não se alterar, para o criminoso, a relação entre risco e rentabilidade”, argumenta. “O criminoso, podem apostar, é racional. Enquanto o poder público recusar a racionalidade, perderá o jogo.”
É de esperar que, passado o impacto da mais recente tragédia carioca e da fala do presidente, a mídia continue a abrir espaços para reportagens e artigos como esses, que ajudem o público ir à essência da questão. E ela passa ao largo de palavras bombásticas,equivocadas e contraproducentes.
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