Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Três graus de separação

Pelo menos para uma coisa serviu a tabajarada de atacar a filha e a mulher de Geraldo Alckmin no site da campanha de Lula, com a retirada do texto horas depois e o pedido formal de desculpas do coordenador reeleitoral Marco Aurélio Garcia.

Ao voltar ao assunto ontem, defendendo o direito do site de atacar o jornal O Estado de S.Paulo em resposta a um editorial interpretado como de crítica pessoal e não política ao presidente, Garcia mencionou uma questão capital para o bom jornalismo.

Trata-se do acesso às páginas de opinião dos jornais e revistas daqueles que pensam diferentemente de seus donos.

Não é o caso de falar em direito – publicações são livres para convidar ou barrar articulistas, e é bom que assim seja. Mas – e esse é um enorme ‘mas’ – a credibilidade de um órgão de imprensa se mede em boa parte pelas oportunidades dadas aos leitores de conhecer opiniões divergentes ou opostas às de seus editoriais, sem que para isso precisem comprar outro jornal ou revista.

Na mídia, são três os graus ideais de separação dos quais depende, ou deveria depender, a confiança a que aspira todo periódico:

1. A chamada separação entre Igreja e Estado: o conteúdo informativo não deve sofrer a influência dos interesses econômicos (ou de outra natureza) dos controladores da empresa que publica o jornal ou revista, incluíndo de modo especial o interesse em deixar felizes os seus anunciantes;

2. A separação entre as páginas do noticiário e a página de editoriais: entre a atividade de informar, com o máximo realisticamente esperável de isenção e objetividade, e a prerrogativa da ‘casa’ de opinar sobre os fatos, sem ou mesmo com parti-pris, com ou mesmo sem honestidade intelectual. Na página de editoriais, o jornal toma posição, emite juízos de valor, ostenta a não-neutralidade de seus donos. Nas outras, deve servir o interesse público, o leitor que o sustenta, apurando e divulgando as verdades do dia, ‘sem medo nem favor’, conforme o adágio clássico;

3. A separação entre a página de editoriais e a página que a antecede ou sucede, por isso mesmo chamada pelos americanos ‘op-ed page’ (página oposta à dos editoriais). A op-ed existe para divulgar análises e opiniões que representem da melhor e mais ampla forma o pensamento da sociedade. Não deveria ser jamais – porém infelizmente é em certos casos – a continuação da página de editoriais por outros meios e com outro nome.

Foi nessa ferida que o coordenador da campanha lulista pôs o dedo ontem.

P.S. Da série ‘Não confundir capitão de fragata com…’

Está ali, na primeira linha da chamada de primeira página do Estado de hoje sobre a concessão do Prêmio Nobel da Paz a Muhammad Yunus, o da revolução do microcrédito:

‘O economista muçulmano Muhamad Yunus…’

Nem o jornal nem ninguém escreveria sobre outros premiados: ‘O químico católico…’, ou ‘o biólogo judeu…’, ou ‘o matemático protestante…’ – ou ainda ‘o físico ateu…’.

No mundo de hoje, em contextos com esse, as pessoas são identificadas por sua nacionalidade. Não por sua fé religiosa (ou ausência de).

Muhamad Yunus nasceu em Bangladesh. É, pois, bengali.

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