Num furo histórico, o New York Times revelou que, em nome do combate ao terrorismo, o presidente Bush autorizou em segredo uma agência de espionagem americana, a NSA, a grampear telefones e mensagens de e-mail e a violar o sigilo postal nos Estados Unidos, sem a imprescindível autorização judicial.
Desde 2002, um número indeterminado de pessoas, possivelmente na casa dos milhares, foram vítimas dessa transgressão flagrante dos direitos individuais e das franquias constitucionais americanas.
Se isso não é abuso de poder e, portanto, crime de responsabilidade, merecedor de um processo de impeachment, não sei o que mais poderia ser.
E se à primeira vista a notícia não merece o Pultizer, o maior prêmio americano de jornalismo e letras, não sei o que mais poderia merecer.
Mas tem o outro lado da moeda.
O próprio Times teve a decência de revelar que descobriu o grave delito há mais de um ano – e engavetou a bomba a pedido do governo, “por causa dos possíveis efeitos nocivos de sua divulgação para investigações que estavam em curso sobre potenciais ameaças terroristas”, informa o correspondente do Estado em Washington, Paulo Sotero, no jornal de hoje.
Mesmo dando todos os devidos descontos aos efeitos do 11 de setembro – o medo de novos ataques do gênero e o imperativo de preveni-los a qualquer preço, nos termos daquilo que Bush definiu como “a guerra ao terror global” -, parece claro que também o mais influente jornal do mundo atentou contra um direito consagrado na América – no caso, o direito à informação.
Como é que um órgão de imprensa da estatura do Times, tendo apurado – e confirmado com uma dezena de ex e atuais funcionários federais de alto escalão – que cidadãos e residentes nos Estados Unidos estavam sendo espionados ilegalmente, por ordem do supremo mandatário do país, se curva ante as pressões do poder e senta em cima da história do atentado?
Sempre, em toda parte, razões de Estado e a preservação da segurança nacional foram invocados para a prática de delitos os mais diversos – e para cobri-los com o proverbial manto do segredo.
A presidência Bush, que não deu a mínima aos alertas de que uma ação terrorista estava em preparo em território americano, cerca de dois meses antes de se concretizar, usa e abusa comprovadamente daqueles pretextos. E o NYT, se não sabia, com certeza tinha motivos para suspeitar disso em 2004, quando amordaçou o seu próprio noticiário.
Se não o compromisso elementar com o leitor, ao menos tais precedentes deveriam ter induzido a cúpula do jornalão a ir em frente com a história. Decerto poderia perfeitamente bem expurgar dela as informações que pudessem “servir ao inimigo”, como dizem as autoridades para que os seus podres não venham à luz.
Aqueles que ignoram a própria história…
E por falar em precedentes, essa não é a primeira vez que o New York Times considera impróprias para publicação revelações de impropriedades, para dizer o mínimo, dos governantes de turno.
Em 1961, o jornal descobriu que o governo americano preparava um exército brancaleone de mercenários e exilados anticastristas para invadir Cuba, naturalmente, sem assumir a iniciativa. E não deu uma linha a pedido do então presidente John Kennedy.
O resultado foi o vexame da Baía dos Porcos – um dos maiores fiascos dos Estados Unidos na época da Guerra Fria – que serviu para endurecer o regime cubano e ancorá-lo definitivamente na esfera de influência da União Soviética. Deu na crise dos mísseis de outubro de 1962, que por pouco não leva os EUA e a URSS a um enfrentamento nucelar, e no bloqueio econômico a Cuba, ainda hoje em vigor.
Depois do desastre, Kennedy e o Times se arrependeram – um do que fez, o outro do que não fez. Os dois lados do balcão bateram no peito: se a aventura tivesse vazado antes de se consumar, logicamente ela não se consumaria, e os Estados Unidos teriam sido poupados de um prejuízo político imenso.
Há um ano ou pouco mais do que isso, o jornal se esqueceu da famosa advertência de que aqueles que ignoram a própria história estão fadados a repeti-la.
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