Jornalistas da TV Globo mostraram, em face da acusação de um leitor deste blog de que a emissora manipulou a cronologia de um discurso de José Dirceu para acusá-lo de ter incitado uma agressão ao governador Mario Covas em 2000, que não houve essa manipulação. Mas o uso da mesma seqüência de imagens, feito pelo programa eleitoral de José Serra em 2002, foi na época objeto de críticas e proibido pela Justiça Eleitoral.
Fica aqui um esclarecimento, passo a passo. Apenas em relação à questão da cronologia e da polêmica em torno do uso das imagens. O ponto relativo a possíveis empréstimos do BNDES não é tratado aqui, nem foi pedido a jornalistas da Globo que o fizessem, porque o leitor fazia uma acusação genérica à mídia.
O leitor questiona
Um leitor contestou, do tópico Dirceu, passado e presente, uma passagem específica:
“Mas o principal noticiário da Rede Globo não perdoou Dirceu e o PT. Explicitou as contradições entre discurso a favor da ética e prática nem tanto. No terreno político, mostrou um discurso de Dirceu concitando para a militância petista. O trecho exibido dizia ´Eles vão apanhar nas ruas e nas urnas´, algo assim. Em seguida, a cena em que o então governador Mario Covas foi agredido por professores numa manifestação no Centro de São Paulo”.
O leitor escreveu:
“1. J.D. foi jurado de morte pela mídia em 2003, quando recusou-se a continuar batalhando pelo PROER da mídia, que exigia doação de R$ 20 bi, mais 10 sem juros a perder de vista para livrar-se dos credores estrangeiros, impagáveis devido aos desacertos financeiros de FHC (desvalorizações brutais do dólar). [José Dirceu vai hoje à noite ao Observatório da Imprensa e esse assunto será provavelmente abordado.] 2. Covas apanhou porque desceu do palanque e chamou os professores para a briga, dizendo que ninguém ali era macho. 3. Covas falsificou a fala de Dirceu, tirando do contexto uma gravação de anos antes, quando um comício do PT foi violentado por paus-mandados do governo”.
Jornalistas da Globo esclarecem
Pedi ao diretor executivo de Jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, elementos para uma resposta ao leitor. Eles foram enviados pelo jornalista Ricardo Villela a Kamel, de quem os recebi. Dizem, em resumo:
“O discurso em que José Dirceu gritou ´nós vamos derrotar eles nas ruas e nas urnas´ foi dito em uma manifestação pacífica de grevistas feita em frente ao Palácio dos Bandeirantes no dia 25 de maio de 2000 – sete dias, portanto, antes das agressões a Mario Covas na entrada da Secretaria de Educação de São Paulo.
Até onde pude pesquisar, nenhum jornal registrou em sua cobertura da manifestação do dia 25 a frase em que Dirceu convocava os professores em greve a ´derrotar eles nas ruas e nas urnas´, mas é possível comprovar que o discurso foi feito nesta data e contexto através de algumas matérias publicadas após a coletiva em que Covas responsabiliza Dirceu pelas agressões”.
O jornalista cita, em seguida, uma reportagem de televisão, duas de jornal e um artigo.
1) A primeira é da TV Globo, foi exibida no SPTV Primeira Edição em 3/6/2000. “Nela, há uma sonora em que José Dirceu tenta explicar o trecho polêmico de seu discurso. Ele não diz ou sequer insinua que o discurso teria sido feito num comício anos antes”, escreve Villela.
2) A segunda foi publicada pelo Globo em 3/7/2000. Nela, Dirceu reafirma o que disse no discurso.
3) A terceira é da Folha de S. Paulo de 6 /6/2000. Nela, Dirceu reconhece implicitamente local e data do discurso ao acusar Mário Covas de usar dinheiro público para filmá-lo: “Dirceu acusou o governador de ter se utilizado do dinheiro público para gravar as imagens de seu discurso, feito na porta do Palácio dos Bandeirantes´: ´Essas imagens foram gravadas pela GW (agência de publicidade contratada pelo governo) ou pela P2 (serviço secreto da Polícia Militar)´.”
4) A quarta é um artigo assinado pelo próprio José Dirceu na Folha de S. Paulo em 8/8/2000, ‘onde ele reconhece que o discurso foi feito na porta do Palácio dos Bandeirantes, acusa Covas de manipulação mas não especifica como a suposta manipulação teria sido feita’, diz Villela.
A propaganda eleitoral em 2002
Fiz uma rápida pesquisa na internet e achei, no clipping eletrônico da Radiobrás de 18/9/2002, várias menções ao uso do episódio na campanha eleitoral de José Serra para presidente da República. A mais completa é a do Globo:
“O PT recorreu ao TSE e conseguiu suspender liminarmente o programa. O líder do PT na Câmara, João Paulo, comparou os ataques aos feitos por Fernando Collor a Lula em 89. Roberto Freire, presidente do partido de Ciro Gomes, disse que Serra contribui para a democracia ao tirar Lula de uma ´posição olímpica´.”
Ancelmo Gois: “José Dirceu diz que vai responder, no horário eleitoral, ao uso de sua imagem ontem no programa de Serra. Ele apareceu incitando os professores a bater em Covas nas urnas e nas ruas. Em seguida, foi mostrada a cena em que os professores atendem ao segundo pedido. Covas morreu sentido com isso, pois ele e Franco Montoro ajudaram José Dirceu a sair vivo do País durante a ditadura. E Dirceu até hoje não se perdoa pelo que fez”.
Pesquisei na Folha de S. Paulo a seqüência do noticiário.
18/9/2002
“Em resposta ao aumento das chances de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno da eleição presidencial, a propaganda de José Serra entrou em fase de pesados ataques ao petista. (….) A imagem do ´lobo em pele de cordeiro´ foi retomada no final do programa. ´O PT que você tem visto na TV é bem maquiado´, disse um outro ator. ´Mas o que você vai ver agora aconteceu há apenas dois anos. E quem você vai ver é o presidente do PT, um político que, se o Lula for eleito, com toda a certeza terá muito poder.´ Na imagem seguinte, que já havia sido usada pelos tucanos na eleição de 2000, surgiu José Dirceu durante a greve dos professores da rede paulista naquele ano. Em seu discurso, o deputado defende ´mais e mais greve´. E conclui: ´Vamos derrotar eles nas urnas também. Porque eles têm de apanhar nas ruas e nas urnas.´ A propaganda associa as palavras de Dirceu à agressão sofrida, dias depois, pelo então governador Mário Covas, morto em 2001 após batalha contra o câncer”.
“O candidato do PPS à Presidência, Ciro Gomes, acusou José Serra (PSDB) de tentar atribuir à Frente Trabalhista as críticas que o partido do tucano fez ontem a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no horário eleitoral gratuito. ´Foi fascista de novo pela forma de fazer. Faz ataque ao Lula, manipulando imagens do José Dirceu, sem assinar. Grudando ali, no meu programa, para parecer a um espectador incauto que talvez aquele ataque esteja sendo feito pelo nosso programa´´, declarou. ´Isso é ilegal e é fascismo.´
Ciro referia-se a discurso gravado de Dirceu em que o petista afirma que ´´eles [o governo] têm de apanhar nas ruas e nas urnas´´. Logo depois, o PSDB exibe cenas em que o governador Mário Covas, já morto, é agredido em uma greve de professores. ´´Esse é o PT que você não vê na TV´´, diz”.
19/9/2002
Clóvis Rossi. “É manipulação. A tática (desconstruir o adversário) parece ser a mesma que a campanha José Serra adotou, com êxito aliás, contra Ciro Gomes.
Mas uma das duas salvas disparadas anteontem contra o PT muda de qualidade e invade o território da manipulação. (….)
Refiro-me à exibição do discurso do presidente do PT, deputado José Dirceu, aos professores em greve, no qual fala em bater nas urnas e nas ruas o tucanato, seguido pelas cenas da agressão de professores ao então governador Mário Covas.
O próprio Serra chegou a dizer que, ´provavelmente´, José Dirceu não foi o responsável pela agressão a Covas. É evidente que não houve relação de causa e efeito entre discurso e agressão. Ela ocorreu porque Covas foi a um ponto de concentração de grevistas, valendo-se do inalienável direito de ir e vir, e acabou sofrendo agressão absolutamente injustificável.
Daí, no entanto, a colar discurso e agressão como cara e coroa da mesma moeda é manipulação.
Há no PSDB quem até justifique esse tipo de apelação grosseira com o argumento de que seja a única maneira de derrubar Lula do pedestal olímpico em que se instalou.
Não é eticamente aceitável (como não é aceitável, de resto, que o PT se omita sobre a tentativa, também sórdida, de envolver Serra em um caso de corrupção mesmo tendo o procurador responsável pela denúncia afirmado que não há prova nenhuma contra o candidato tucano)”.
22/9/2002
“Em seu programa de ontem à noite, o candidato do PSDB à Presidência, José Serra, parou os ataques que vinha fazendo ao PT no horário eleitoral gratuito na TV. Na propaganda da tarde, Serra ainda havia usado parte do tempo para ataques, levando ao ar depoimento de Renata Covas Lopes, filha do governador Mário Covas, afirmando que a agressão sofrida pelo pai em 2000 foi consequência de um discurso de José Dirceu, presidente nacional do PT. (….) A decisão de proibir o PSDB de exibir o depoimento de Renata Covas foi tomada pelo presidente do TSE, ministro Nelson Jobim. Ele aceitou argumento do PT de que Serra descumpriu liminar anterior que suspendeu a exibição do discurso de José Dirceu”.