Pois é. A economia mundial vive a maior crise desde a segunda guerra, ou desde a grande depressão – ou desde sempre. E a imprensa cobriu com os mesmos cacoetes dos tempos de vacas gordas o encontro, em Belém, das organizações que os fatos dos últimos meses tornaram as únicas credenciadas a dizer: “Bem que nós avisamos!”
O Fórum Econômico de Davos continua a merecer o respeito da mídia, embora reúna os profetas falidos das virtudes da desregulamentação financeira, os culpados pela esbórnia homérica que hoje custa o emprego de milhões de pessoas e os luminares que agora não ousam prever, no que enfim estão certos, quanto vai durar e no que vai dar a desgraceira que desceu sobre o mundo.
Já o Fórum Social continua a ser tratado folcloricamente como “convescote”, “happening”, um ajuntamento de “tribos” prontas a criticar, mas incapazes de oferecer “qualquer sugestão” para o mundo tirar o pé da lama.
De um enviado especial a Belém: “Não é fácil entender o encontro […] Não se consegue extrair do fórum nenhum documento que aponte um caminho a seguir contra a crise.”
Sim, eles são muitos, diversos, com agendas para todos os gostos, nenhum consenso sobre a vida e a suas implicações que dê para resumir numa manchete, ou nenhum consenso, ponto – e, sim, eles dão palco e platéia para esse retrocesso chamado Hugo Chávez. Mas reduzir a isso a informação sobre o evento é de uma miopia que só o preconceito explica.
Ou melhor, os preconceitos, no plural. Um deles é o de abordar o novo a partir de um modelo velho – o da cobertura de congressos tradicionais, em que se fala, se disputa, se negocia, se formam facções, até a hora quando, pelo voto ou por aclamação, se tira a resolução final, se dão os trâmites por findos e os repórteres fecham as suas matérias e partem para outra.
Mas a pauta do Fórum Social para a qual a mídia não está nem aí é a do seu próprio movimento centrífugo, a mobilização e a discussão de ideias (seja qual for o seu mérito presumível) como obras abertas. O outro mundo de que os seus participantes falam pode ser, ou não, possível. Mas uma outra forma de fazer política já está em curso – nas barbas de uma imprensa pavlovianamente condicionada a esperar o que dali não sairá, por ter sido descartado, para o bem ou para o mal. Um outro jornalismo também deve ser possível.
Nessas novas articulações, até a presença de presidentes como os que estiveram em Belém pode não ser exatamente o que parece.
Por isso é que o jornalista, decerto uma raridade, interessado nos desdobramentos do Fórum, devia ler o artigo “Sem atalhos”, da ex-ministra Marina Silva, na Folha da segunda-feira, 2. Não é para concordar. É só para entender.
Entender, em primeiro lugar, a relação entre os “sociais” e a política organizada. “Provavelmente precisaremos nos livrar do peso da tradicional visão que vê os líderes como portavozes do destino”, escreve Marina. “Por mais que figuras carismáticas importem em processos de mudança, não dá mais para substituir – e nem é desejável fazê-lo – o papel de cada ser humano, sob pena da mesmice política, da terceirização de sonhos e de transformar cidadãos em meros seguidores.”
Entender, em consequência, o que pode haver de original, criativo – notícia, portanto – no modo como o Fórum pretende motivar, arregimentar e agir. Da ex-ministra:
”Numa sociedade movida a informação, formação de redes e espaços antes impensáveis de militância, a perspectiva do século 21 em plena crise, só pode ser a da interação real, de escuta, de convergência de múltiplas competências e percepções. E de novas referências para a busca de soluções menos verticalizadas e estanques […].”
Quando, guardadas as proporções e as diferenças, a infantaria do candidato Barack Obama foi por aí, a mídia se encheu de ohs! e ahs! Quando o Fórum entende que esse é o caminho, os jornais nem sequer se dão ao trabalho de checar se está andando como acha que deve.
Talvez ainda não, a julgar pelo conselho que lhe dá o decano da sociologia francesa, Alain Touraine, entrevistado por Laura Greenhalgh e Ivan Marsiglia para o caderno dominical Aliás, do Estado – o melhor produto singular da imprensa diária brasileira.
“Ajeitem seus canais de expressão se quiserem ter influência política”, é a mensagem de Touraine. Para o sociólogo, “os temas introduzidos pelos ‘altermundialistas’ no Fórum Social são, de fato, essenciais na tomada de consciência sobre os riscos que o mundo corre” – o que nenhum repórter, comentarista ou redator de editoriais desdenhosos sobre o acontecimento teve a lisura de pelo admitir que possa ser verdadeiro.
“Mas essa gente”, ressalva Touraine, “tem grande dificuldade de organizar suas ações, por uma razão elementar: o adversário contra o qual lutam são as grandes empresas multinacionais, que estão fora de seu alcance.”
Na Folha, outro sociólogo, o brasileiro Michael Löwy, radicado há 40 anos na França, também defende os altermundistas. Para ele, “está muito clara a vitalidade extraordinária do processo do Fórum, sua capacidade de se reinventar e avançar em idéias e propostas. Quem está em crise agora é o outro fórum, o de Davos.”
Já se disse, quem sabe injustamente, que entrevista é jornalismo preguiçoso. Mas a dura sentença se aplica ao caso. Isso (e muito mais) que os sociólogos dizem – “essa gente tem grande dificuldade de organizar suas ações”; “está muito clara a sua capacidade de se reinventar” – tinha de ser levado ao leitor no formato jornalístico por excelência: a reportagem.
Só depois de garimpar os fatos e sentir o clima em Belém é que a imprensa poderia dizer com um mínimo de objetividade se “não é fácil” mesmo “entender o encontro”.