Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma inovação ignora outra – no mesmo jornal

Certa vez, mais a sério do que brincando, o lendário jornalista Cléudio Abramo falou que sonhava com o dia em que faria um jornal com uma notícia só.

Ele queria dizer com isso, filosoficamente, que tudo tem a ver com tudo. O insuperável problema prático, é claro, consistiria em estabelecer as conexões de sentido entre todas as matérias de uma edição.

Mais ou menos, porém de incomparável complexidade, como a teoria dos seis graus de separação: entre qualquer pessoa do mundo e outra só existiriam seis etapas, com quatro ‘intermediários’. Ou seja, A conhece algum B, que conhece algum C, que conhece algum D, que conhece algum E, que conhece F. Seja A o Bill Gates e F um coletor de lixo em Bangladesh, por exemplo, a regra se aplicaria – desde que o B, o C, o D e o E fossem as pessoas ‘certas’.

Mas uma redação de um grande jornal, pela combinação do seu gigantismo com um peculiar modo de produção, seria o último lugar do mundo onde a notícia A se relacionaria com a notícia F com a mediação de apenas quatro outras notícias.

Ali, é o caso de dizer, a mão direita não sabe o que faz a esquerda e vice-versa.

Por isso, hoje, quando o noticiário econômico é dominado pela posse do novo presidente do BNDES, economista Luciano Coutinho, que anuncia que a inovação será o pilar da política industrial que o banco pretende fomentar, o Valor traz uma excelente entrevista de página inteira com o ministro de Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, cujo ponto forte é – inovação.

E o jornal não estabelece nenhum elo, por convergência ou divergência que fosse – nem uma mísera remissão – entre o que Coutinho disse para todo mundo ouvir e o que Rezende disse, dias atrás, só ao repórter Chico Santos – e que lhe rendeu o título ‘Falta cultura da inovação para o país, diz ministro’.

Como as declarações de Coutinho estão em todos os jornais e as de Rezende só no Valor, cuja edição online só é acessível aos assinantes, eis a entrevista do ministro:

Valor: A política industrial está fazendo três anos. No 2º Congresso Brasileiro de Inovação na Indústria, vários especialistas defenderam a necessidade de se fazer modificações. O câmbio, por exemplo, inviabilizaria a instalação de fábricas de semicondutores no país, independente de apoio. O ideal então seria apoiar inovações de forma universal, sem focar em setores. Como o senhor vê esse tipo de crítica?

Sergio Rezende: Eu participei da abertura do Congresso Brasileiro de Inovação e acompanhei por informações diversas o que aconteceu nos outros dias. O que há é que, é verdade, tem gente que acredita que a política industrial deveria ser mais abrangente, em vez de focalizada em alguns setores, falou-se na questão do câmbio, mas também teve gente que defendeu que ela mantivesse este curso. Uma das razões pelas quais a área de semicondutores foi escolhida é porque o déficit na balança comercial do país nessa área é muito grande. E essa é uma área que vai continuar em expansão no mundo inteiro. Os semicondutores estão hoje tomando conta de vários setores da indústria, como a automobilística, por exemplo. Então, essa indústria vai continuar aumentando. Algumas medidas concretas estão sendo tomadas em relação a esse assunto e são decorrentes da política industrial e tecnológica. Duas delas estão sendo agora aprovadas pelo Congresso Nacional, uma que cria incentivos fiscais claros, importantes, para a instalação de fábricas de semicondutores no Brasil. E a outra é na área de TV digital, também envolvendo o mesmo setor.

Valor: São medidas compensatórias à situação cambial?

Rezende: São medidas que desoneram a produção do setor, o chamado Padis (Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria de Semicondutores). Nunca tivemos o que vamos ter agora, com um sentido tão claro para a indústria de semicondutores. O Brasil começa a despertar a atenção de investidores estrangeiros, não só por causa disso, mas porque o mercado brasileiro está se ampliando muito. Há quatro anos ninguém imaginaria que o Brasil teria, como tem hoje, mais de 100 milhões de celulares, que o Brasil tivesse uma industria de computadores que já chega a fabricar 10 milhões de unidades por ano. A indústria está crescendo e todos os semicondutores são importados. O investimento em inovação, eu concordo, deve ocorrer em todos os setores. Por isso, uma das leis que decorreram da Lei da Inovação foi a chamada ‘lei do bem’. ‘A lei do bem’ tem um incentivo para pesquisa e desenvolvimento, resultante de incentivo fiscal, que é o mais abrangente que nós já tivemos. E várias empresas estão voltando-se para isso. Esse 2º Congresso Brasileiro de Inovação na Indústria, que tivemos agora, ocorreu apenas um ano e meio depois do primeiro. É curioso que o primeiro congresso tenha sido feito somente em 2005. O segundo foi agora. Então, eu acho que o mais importante que está acontecendo nesse ambiente todo é que o setor empresarial está despertando para o fato de que a forma de competir, tanto dentro do Brasil como externamente, é fazendo com que a inovação seja incorporada ao seu processo produtivo.

Valor: Fazendo um balanço, o senhor diria que a política industrial como ela é está ajudando os setores a dar a volta por cima no seu grande déficit comercial?

Rezende: Como eu disse anteriormente, eu acho que falta na indústria brasileira, tanto nas empresas nacionais como nas multinacionais instaladas aqui, a cultura da inovação. E uma mudança de cultura você não faz rapidamente. Nós passamos muito tempo sem ter política industrial. O que nós temos hoje é uma política industrial e tecnológica. Isso é uma grande novidade, no sentido que, muitas das iniciativas que o governo toma, tanto em termos de recursos quanto em termos de articulações e assim por diante, são iniciativas nas quais o estímulo à inovação faz parte das iniciativas que são tomadas. Nós estamos pela primeira vez fazendo a política industrial e a política tecnológica convergirem. Vou dar um exemplo de como está acontecendo no lado tecnológico. O Ministério da Ciência e Tecnologia, que é novo, foi criado há 22 anos, sempre foi voltado para o setor acadêmico, universidades e centros de pesquisa. O Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), criado em 1971, sempre foi voltado para este setor (acadêmico). Agora, ele tem instrumentos específicos para inovação nas empresas: subvenção econômica, recursos para equalização de juros para empréstimos menos onerosos, recursos para cooperação universidade-empresa e recursos para capital de risco, ‘venture capital’ para investir em empresas novas de base tecnológica. Isso é uma novidade. Começou a ser feito a partir de 2000 e nós intensificamos. Então, hoje, aproximadamente um terço do FNDCT é destinado a empresas.

Valor: Financiamentos não-reembolsáveis não geram o risco de tomarem caminhos errados, desperdiçando os recursos? Há quem ache que sim.

Rezende: Olha, risco sempre tem e isso acontece em qualquer lugar do mundo. Agora, o que é importante é que nós passamos a ter um instrumento que que os países desenvolvidos têm há muito tempo. Nos Estados Unidos, que têm muitos recursos para o programa de defesa, para o programa espacial, muitos dos desenvolvimentos que são incorporados nos processos de produção das indústrias são desenvolvidos sob contrato do governo. E como é feito isso? Eles fazem uma licitação. Quem quer desenvolver tal avião ou tal chip para tal aplicação militar ou espacial? As empresas apresentam seus projetos, o governo seleciona e elas vão conduzir. O que estamos fazendo com a subvenção é semelhante. Fizemos um edital chamando propostas de empresas para sete temas dentro da política industrial. Foram apresentadas cerca de 1.100 propostas. O edital tinha R$ 300 milhões. A demanda total foi de R$ 1,9 bilhão. Então, foi uma demanda grande. Com uma demanda grande, é possível fazer uma seleção com risco de erro menor. Como é que foi feita essa seleção? A Finep organizou comitês de avaliação dos projetos formados por representantes do setor empresarial, do setor acadêmico e do governo, em partes iguais. E as pessoas passaram semanas analisando projetos. Fizemos o que podíamos fazer para escolher os melhores projetos. Os resultados, iremos saber daqui há dois anos, porque os projetos têm dois anos de duração. Como é um instrumento novo, sempre pode ser aperfeiçoado. Agora, acho que começar criticando… Aliás, quando ele foi lançado, em agosto do ano passado, saiu um editorial em um grande jornal de São Paulo criticando violentamente, por duas razões: dizia que era só para alguns temas, quando deveria ser aberto. Segundo, que o prazo era muito curto e não haveria demanda qualificada. Não foi o que aconteceu. É lógico que é importante que as pessoas se preocupem com a boa utilização dos recursos. Agora, começar a criticar uma coisa antes de ela estar funcionando vai do nosso hábito de estar sempre colocando defeito nas coisas.

Valor: Como o senhor rebate essa crítica de que seria melhor universalizar do que focar o apoio em algumas áreas?

Rezende: O edital que foi feito fala em sete temas prioritários. Primeiro, o julgamento foi focado, mas os projetos que não estavam tão focalizados foram deixados para uma segunda etapa, denominada temas gerais. Os temas gerais, de uma certa maneira, ampliaram o escopo. Agora, se abrir completamente fica até impossível operacionalizar. Vão aparecer propostas de empresas para melhorar a produção de macarrão. Como é que você vai dizer que não é importante? Como você vai julgar um projeto desses comparando com um projeto de software ou de microeletrônica. Você tem que definir os setores para poder fazer comparações entre os projetos.

Valor: Como o senhor está acompanhando esse debate sobre a existência de ‘doença holandesa’ (desindustrialização) na indústria brasileira por conta da valorização cambial?

Rezende: Como você falou bem, é um debate. Na semana passada em li no Valor uma coluna dizendo que ‘doença holandesa coisa nenhuma’, o Brasil está passando ao largo disso. Os empregos industriais estão aumentando continuamente há vários anos, o mercado está se ampliando… então, é um debate, tem gente dizendo que sim, tem gente que não. Nos últimos dois meses, todos os indicadores de crescimento da indústria e do PIB (Produto Interno Bruto) no Brasil foram revisados para cima. Vamos ver o que vai acontecer.

Valor: O BNDES, sob inspiração do professor Antonio Barros de Castro (diretor de Planejamento), vinha trabalhando em propostas de desenvolvimento de cadeias produtivas, nas quais o Brasil tenha alguma liderança como forma de enfrentar o rolo compressor industrial chinês. Como está andando este assunto dentro do governo?

Rezende: Isso está andando bem. Anteontem (dia 25) tivemos uma reunião com sete ministros na Casa Civil para discutir a cadeia do etanol. A grande discussão é o que devemos fazer em termos de inovação em toda a cadeia, desde a melhoria genética de variedades de cana para produzir etanol, ou de oleaginosas para produzir biodiesel, até o processo final de extração, de uso de motores… Nós estamos montando uma rede de pesquisa em etanol grande e acho que o Castro tem razão: aqueles setores nos quais temos vantagem competitiva por alguma razão, devemos fazer um esforço em toda a cadeia.

Valor: A soja tem uma infinidade de aplicações industriais, mas o Brasil praticamente ainda não entrou nessa diversificação, embora seja o segundo produtor mundial. Como levar o país para esse caminho?

Rezende: O Brasil tem usado a soja em toda a cadeia de alimentação. Agora, está usando em combustível (biodiesel), mas precisamos evoluir. Nós temos é que – e isso vale tanto para a soja quanto para outros setores – arranjar fórmulas, e a inovação é um componente essencial disso, para agregar valor à produção. Você sabe que o maior exportador mundial de pó de café processado é a Alemanha, e ela não produz um grão de café. Ela compra matéria-prima do Brasil e beneficia. Nós somos grandes exportadores de matérias-primas, em vários setores, e precisamos fazer força para agregar valor a esses produtos.

Valor: O senhor não está preocupado com a possibilidade de o Brasil virar um grande canavial para exportar etanol para os Estados Unidos, Europa e Japão?

Rezende: Preocupado não, porque o Brasil usa apenas 5 a 6 milhões de hectares para a produção de etanol e os levantamentos feitos mostram que, sem nenhum risco para os ecossistemas importantes do país, podemos chegar a 50 milhões. De modo que podemos expandir muito. Algumas notícias dizem também que esse mercado do etanol garante um crescimento do agronegócio brasileiro por muitos anos, e quando se fala em agronegócio estamos falando também na indústria de bens de capital, de máquinas. Acho que o Brasil vai se beneficiar desse grande movimento mundial em favor do biocombustível.

Valor: Vários cientistas reclamam que a pesquisa no Brasil continua emperrando em problemas básicos, como a burocracia para importar materiais e equipamentos essenciais que não têm similar nacional. Como isso está sendo enfrentado?

Rezende: Eles têm toda razão, a burocracia é grande. Ela resulta do fato de que o Brasil, durante muito tempo, sempre teve problemas na sua balança de pagamentos. Então, criou-se dificuldades para a importação. Mas há bem pouco tempo, há três meses, fizemos um grupo de trabalho envolvendo o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), o próprio Ministério (da Ciência e Tecnologia), Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a Receita Federal para estudar o que se pode fazer para destravar os processos de importação de bens essenciais para a pesquisa.

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