Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma outra imprensa é possível

O site G1, a página da Rede Globo de TV na internet, lançou esta semana um blog diário com dicas para economizar água em cidades afetadas pela estiagem de meio de ano. É uma iniciativa importante e oportuna, mas insuficiente para enfrentar situações mais agudas como a de São Paulo.

Os paulistanos vivem uma situação em que medidas administrativas e paliativos só produzirão efeitos duradouros se forem acompanhados por algo mais permanente como a mudança de valores e comportamentos. Só que novos valores que permitem a automatização dos novos comportamentos levam tempo para serem substituídos por outros mais adaptados a novas realidades. É aí que entra a imprensa.

A mudança de valores quase sempre é vista como algo inviável ou utópico, principalmente pelos jornalistas acostumados a buscar resultados imediatos. É uma forma muito comum de jogar o problema para adiante sem resolvê-lo. Mas é bom lembrar que o hábito de fumar, um tabu na imprensa nos anos 1960 e 70, quando sua defesa foi comparada à preservação da liberdade de escolha, mudou 30 anos mais tarde. O mesmo aconteceu com outros valores como a limitação da natalidade, direitos iguais entre homens e mulheres e, mais recentemente, a questão da homossexualidade e do meio ambiente.

Na maioria desses casos, a imprensa resistiu até onde pôde à mudança de crenças, valores e comportamentos, mas depois alterou suas estratégias editoriais. Nem todos os veículos de comunicação acataram este aggiornamento, mas é inegável que até mesmo os mais conservadores já não se mostram tão resistentes à mudança.

A falta de água que afeta São Paulo atualmente é um caso extremo de um fenômeno que pode atingir os grandes conglomerados urbanos do país. As cidades cresceram desordenadamente, a população inchou geometricamente e a modernização da infraestrutura ficou amarrada a decisões burocráticas dos poderes públicos. O resultado é uma defasagem entre demanda e oferta de serviços públicos, especialmente os de saneamento e transporte.

A questão é urgente e não pode esperar décadas, como aconteceu na questão do fumo. A pressa torna compulsória a participação da imprensa no esforço para mudar o comportamento da população com respeito ao uso da água e a proteção aos mananciais onde ela é captada para consumo urbano. É claro que os governos têm muito a fazer em matéria de racionalizar a distribuição e reorganizar a gestão do saneamento urbano. Mas as autoridades não podem, e nem seria desejável, comandar o processo de atualização dos valores que orientam os comportamentos da população em matéria de uso da água.

A solução do problema do abastecimento de água torna inevitável a troca do individualismo pelo espírito comunitário na conduta diária das pessoas, não importa o seu status social. Sem uma nova mentalidade baseada na preocupação com o bem estar coletivo não adiante baixar normas, punições, racionamentos e reajustes nas tarifas. 

Como há urgência e o desafio é complexo, a imprensa tem uma responsabilidade da qual ela não pode fugir, não só por uma questão de coerência com sua retórica de defesa do interesse público, mas principalmente porque a reconquista da fidelidade dos leitores, ouvintes e telespectadores é fundamental para a sobrevivência com negócio nesta traumática busca de um novo modelo de negócios na era digital.

É possível, sim, abandonar a prioridade histórica dada à agenda noticiosa orientada por interesses político/eleitorais e financeiros, e trocá-la por uma estratégia editorial que enfatize a desenvolvimento de uma nova mentalidade urbana em relação a itens escassos como água, saneamento básico, transporte e segurança pública. 

Iniciativas como o blog do G1 poderiam associar a divulgação de dicas para economia de água à necessidade de mudar comportamentos vigentes entre os moradores de São Paulo, por exemplo. Na hora em que os jornais colocassem esta preocupação nas manchetes da primeira página algo poderia começar a mudar na cabeça e no quotidiano das pessoas. Um dos maiores especialistas mundiais em mudança de valores sociais, o norte-americano Daniel Yankelovich, garante que a mudança acontece quando o fluxo de notícias é sequencial e cumulativo. Não é uma notícia que muda comportamentos e valores, mas uma sequência de notícias.

Yankelovich, que se especializou no estudo das mudanças de comportamentos, crenças e valores entre os norte-americanos, lamentou em seu livro Coming to Public Judgment:Making Democracy Work in a Complex World  que a inércia da imprensa tenha colaborado para que mudanças importantes como a questão da igualdade de sexos no mercado de trabalho tenham demorado tanto a consolidar-se.

Na era digital, a imprensa tem enormes possibilidades de acelerar o processo porque ela é uma das responsáveis pela deflagração de processos virais na disseminação de dados e informações. O público da imprensa encolheu porque os jovens migraram para o Facebook e Twitter, mas ela ainda tem o poder de alimentar a agenda pública e provocar debates nas redes sociais onde o conhecimento é gerado.

A imprensa não perde nada se mudar de foco na estratégia editorial. Pode até correr o risco de sair ganhando porque o público dá sinais de saturação em relação a monotonia dos escândalos, violência, tragédias e maquinações político-eleitorais. Leitores e especialistas podem contribuir com casos concretos e experiências em curso em matéria de economia de água em grandes cidades, como fez o leitor deste blog, Toninho Belo, que comentou sobre a importância da população proteger os mananciais que abastecem as cidades.

Mas cabe à imprensa situar as dicas e conselhos dentro da perspectiva da mudança de valores e comportamentos para que as sugestões contribuam para a consolidação de novas rotinas no modo de vida urbano em grandes megalópoles.