No artigo de capa desta semana, a Veja convoca sabe-se lá quem para impedir que o presidente Hugo Chávez consiga “construir o socialismo” (entre aspas no texto) e “destruir mais países na América Latina”. Pede que o “ditador eleito” da Venezuela seja “contido” (como?; com papel e tinta, com passeatas, com invasão militar?).
Entendem-se as aspas como contestação de que se trate efetivamente de alguma “construção do socialismo”. Elas são aí, portanto, tecnicamente corretas. Não dá para tomar ao pé da letra a retórica chavista e aceitar que seu governo esteja “construindo o socialismo” na Venezuela. Mas a mesma expressão vai sem aspas no início do artigo. E transmuta-se, na capa, em “liderar a revolução na América Latina”.
Esconjurar o “socialismo” ou a “revolução” é uma opção ideológica, ou mercadológica, da revista. Problema de seu dono e de seus editores. Talvez convenha até pensar numa edição contra a China “comunista”.
Como seria de se esperar, o texto propriamente dito mistura, a avaliações selecionadas para desqualificar o governo Chávez, opiniões de entrevistados sérios. Mas a intenção de manipular tem outras componentes.
Primeiro, uma bateria de dados sem fontes sobre a situação econômica e social da Venezuela. Não há por que duvidar a priori dos dados, embora eles precisem ser colocados em contexto. Não seria mau conhecer as fontes dessas informações. Os responsáveis pela publicação dirão que a referência tornaria a leitura pouco convidativa num veículo como a Veja. Mas a revista costuma citar a fonte de seus dados, nem que seja à margem de tabelas ou gráficos.
Cuba de Batista: esplendor ou agonia?
A peça de resistência do artigo da Veja é o argumento de que, se a Venezuela seguir o mesmo caminho socialista de Cuba, irá para o buraco. Pode-se até examinar o argumento, porque Cuba em certo sentido foi para o buraco em nome do socialismo, e não apenas devido ao bloqueio econômico americano e outras hostilidades, mas sobretudo em função de erros cometidos por seus dirigentes.
Mas é de uma falta de informação histórica patética o seguinte trecho da Veja:
“Quando Fidel tomou o poder, Cuba exibia índices socioeconômicos invejáveis. Sua renda per capita era a quarta maior da América Latina e o país exportava em dólares o mesmo que o México, país cinco vezes mais populoso. A ilha era o terceiro em uma lista de onze países latino-americanos com o maior consumo de alimentos por habitante, com média diária de 2.730 calorias”.
Vejamos o que diz a respeito desse período o historiador Louis A. Pérez, Jr., em Cuba Between Reform and Revolution (Oxford University Press, 2006, terceira edição). Ele oferece números ainda mais impressionantes do final do governo de Fulgêncio Batista (pág. 225). Não vou copiá-los. Mas, imediatamente em seguida, escreve (em tradução livre):
“A aparente afluência desfrutada por Cuba, entretanto, guardava tensões e frustrações que se estendiam vertical e horizontalmente pela sociedade cubana inteira. As flutuações da economia de exportação continuaram a criar condições de apreensão que afetaram todas as classes sociais”.
A segurança da classe média cubana tinha passado por uma erosão e seus integrantes “encontravam pouco alívio nos cálculos estatísticos que apregoavam seu alto nível de consumo material e colocavam a ilha perto do topo da escala de renda per capita da América Latina. A realidade social era bem diferente. Cuba era diretamente integrada ao sistema econômico dos Estados Unidos e aos correspondentes padrões de consumo. Enquanto os cubanos tinham uma renda per capita notavelmente alta e invejável em termos latino-americanos, eles viviam dentro do custo de vida norte-americano”.
O autor dá alguns dados. Escolhi os seguintes:
“A renda per capita de US$ 374 [em 1957] empalidecia ante os US$ 2 mil da média americana, e mesmo em face da do estado mais pobre, o Mississipi, que era de US$ 1 mil. O custo de vida em Havana [*], além disso, figurava entre os das quatro cidades mais caras do mundo, numa lista encabeçada por Caracas, Ancara e Manilha”.
Já se imagina quem dispunha de dinheiro para pagar pelo luxo (em 1954, Havana tinha o maior número de Cadillacs per capita do mundo).
E Pérez, Jr. mostra o drama dessa inserção na economia americana:
“Os cubanos participavam diretamente no e dependiam inteiramente do sistema econômico norte-americano quase da mesma maneira que os cidadãos dos Estados Unidos, mas sem acesso aos programas do serviço social americano, e com níveis de emprego e renda substancialmente menores do que os dos cidadãos americanos”.
Seguem-se outras informações:
“O desemprego e o subemprego continuaram a lançar uma sombra sobre toda a classe trabalhadora cubana. Calcula-se em 475 mil, um quarto de toda força de trabalho, o número de trabalhadores no açúcar que tinham em média menos de 100 dias de emprego por ano. A sazonalidade da economia do açúcar, por seu turno, afetava os transportes, o comércio varejista e outros setores ligados às atividades centrais da economia de exportação. Além do problema da sazonalidade havia o da imprevisibilidade. (….) Quase 60% da força de trabalho total definhavam entre o desemprego e o subemprego”.
Se isso fosse “exibir índices socioeconômicos invejáveis”, o argumento da Veja poderia ser considerado.
De qualquer modo, e talvez isso não tenha ocorrido à Veja, fica difícil entender por que o ingrato povo cubano teria retribuído tanta afluência com uma revolução que mandou Batista para o exílio.
[*] “(….) quase 20% da população, concentrados em 0,5% do território nacional, representavam 80% da construção civil, 70% do consumo de eletricidade, 62% dos salários e empregos, 73% dos telefones e 60% dos automóveis”, pág. 229.