O correspondente sênior do Estadão em Paris, o jornalista e autor Gilles Lapouge [o outro é Reali Jr., quase tão veterano como ele] escreveu para a edição de ontem do jornal onde trabalha há cerca de 50 anos um texto fora dos seus padrões.
Habitualmente, Lapouge produz análises sofisticadas sobre questões francesas e internacionais. Delas se pode discordar ou com elas se pode concordar. Só não se deve ignorá-las.
Pois bem. Dessa vez ele escreveu uma reportagem – entremeada de comentários e ironias, mas reportagem do mesmo jeito – sobre um assunto de interesse do público interno (jornalistas) e externo (leitores).
O assunto é o comércio de informações sobre o queima-queima que há duas semanas domina a mídia francesa e européia.
Assim como no Iraque, compara Lapouge, “os jornalistas estrangeiros utilizam maciçamente em suas reportagens os serviços de intérpretes locais, também chamados aqui de “fixeurs”.
A palavra intérpretes devia vir entre aspas porque eles fazem muito mais do que interpretar. Daí fixeurs, do inglês fixers, quebradores de galho, resolvedores de problemas.
Além de prover a segurança das equipes de repórteres, o galho que eles quebram, no caso da França, é menos o eventual desconhecimento desses estrangeiros da língua de que os nativos tanto se orgulham – e da sua ignorância, que não tem nada de eventual, da gíria dos jovens dos subúrbios de Paris – do que o dificílimo acesso dos enviados especiais aos personagens do drama que ali se desenrola.
Em outras palavras, eles são fornecedores de aspas. Relata Lapouge:
“O jornalista pede aos chefe do bando [dos fixeurs] para lhe arranjar para determinada hora um traficante, um militante islâmico, um imigrante amistoso ou um imigrante hostil. E, na hora estabelecida, a encomenda será entregue”, pronta para ser ouvida, fotografada, ou filmada.
Isso sim é que é assessoria de imprensa. E pela módica de 150 euros por entrevista, “quantia que pode aumentar se o fixeur conseguir uma exclusiva com um chefe de bairro” [da gangue do bairro, bem entendido].
Fixeurs e minders
Claro que o repórter não tem como saber se aquele jovem a quem entrevista e que defende, ou critica, os distúrbios, acha mesmo o que diz, ou apenas está cumprindo o papel de que foi encarregado pelo fixeur.
O repórter tampouco tem como saber se aquele fixeur em particular tem interesse em que determinado copain apareça na TV, dizendo isso ou aquilo, razão por que o apresentou a ele. Nesse caso, o intermediário deveria ser chamado minder, o que Lapouge podia ter acrescentado.
Minders são mentores. Especialmente nas ditaduras, eles são essenciais. Na Coréia do Norte de Kim Jong-Il, como era no Iraque de Saddam, e em tantos outros lugares, não existe essa coisa de jornalista estrangeiro chegar e ouvir quem quiser falar com ele, mesmo que um fale o idioma do outro.
O gringo quer entrevistar um economista, um acadêmico, um editor, um dignitário do partido único? ‘Nie problema’, como dizem os russos. O minder arranja a fonte, traduz o que ela declara, ou corrige, ou ainda inventa, e depois informa aos seus superiores se ela recitou a coisa certa ou pisou no tomate. O entrevistado sabe perfeitamente disso e, a menos que seja doido de pedra, andará na linha.
Nesses lugares e situações, grande jornalista é aquele que faz o jogo do minder torcendo para ter uma chance de driblar a sua vigilância e conversar a sério com um local, mesmo que não possa identificá-lo na matéria, ou de receber, sabe-se lá como, um documento comprometedor para o regime.
E jornalista de muita sorte é aquele cujo minder faz o que dele espera o regime. Mas, sendo ele próprio um dissidente, sopra algumas verdades ao ouvido do visitante, entre uma entrevista vigiada e outra.
Já que vocês vão pôr fogo mesmo…
Existe ainda um outro tipo de negócio entre o jornalista – e nesse caso tem de ser de TV – e o seu fixer ou fixeur. Aí a barra é mais pesada.
No caso francês, o repórter compra do fornecedor vídeos amadores de carros ou edificações sendo incendiados. Só se for incrivelmente ingênuo para o ofício que exerce, não saberá que o que foi filmado foi encenado para isso mesmo. Mas os compradores fazem de conta que as cenas são “espontâneas”.
Lapouge: “Tipos jogam coquetéis molotov contra uma loja ou um ônibus só para poder filmar o incêndio e revender o filme com grande lucro para as TVs.”
Ainda não acabou. Eu não sei se isso aconteceu esses dias na França, mas sei que aconteceu nos Estados Unidos pelo menos uma vez, em 1965.
Foi no chamado gueto negro de Watts, em Chicago. Depois que os Panteras Negras incentivaram o pessoal a pôr fogo em tudo que pudesse arder, produtores de telejornais propuseram aos carbonários, por interpostas pessoas, o seguinte:
Já que vocês vão continuar fazendo isso enquanto puderem, por que não o fazem sempre à noite? É bom para nós, por causa da maior dramaticidade das imagens [fogo no escuro é literalmente outra coisa] e é bom para vocês, por causa da maior repercussão dos seus atos junto ao público e ao governo.
Dito e feito: desde então, até a rebelião ser extinta, nunca mais algo pegou fogo em Watts à luz do sol.
Desculpem os que já conhecem a minha analogia, mas a tentação de repetí-la é irresistível nesse contexto.
Otto von Bismarck, o “Chanceler de Ferro” da Prússia, no século 19, odiava o mínimo de democracia que aceitou que existisse nos seus domínios. Um belo dia, indignado com uma decisão do Reichstag, o parlamento, fez um comentário que entrou para a história: “Ah, se o povo soubesse como se fazem as leis e as salsichas.”
Digo eu, quando tenho motivo: “Ah, se o povo soubesse como se fazem as notícias.”
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